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Precisamos sair desta noite escura

Médico com doutorado na Harvard University, Carlos Nery tem sido um nome de referência quando o assunto é a covid-19 no Piauí


Com a apreensão contínua na cabeça de milhões de pessoas ao redor do mundo, é inevitável não haver um sentimento de longa e demorada espera. Os últimos seis meses não têm sido fáceis de serem atravessados. A analogia do infectologista Carlos Nery sobre uma noite escura faz mais sentido do que se pode imaginar. Afinal, hoje sabemos que a escuridão da noite não se dá meramente porque estamos no lado da Terra não iluminado pelo Sol, mas porque o Universo teve um começo. Sem estrelas, esse período sombrio do Universo deixa sua marca noturna até hoje. Mas a paciente e contínua atuação das forças universais garantiram não só a luz e um possível amanhecer neste nosso planeta, mas também a vida.


A luta pela sobrevivência durante a pandemia que enfrentamamos tem exigido esforço de cada pessoa, para um novo amanhecer. Carlos Nery diz que “temos que fazer um lockdown para que amanheça” e garante que essa medida precisa ser tomada em um conjunto de forças e de decisões pensadas na coletividade. O médico passeia pela história, pela política e faz com que compreendamos uma dimensão muito maior e interdependente da situação atual.


Suas reflexões levam em consideração uma experiência vasta na luta contra doenças emergentes. Seu modo sincero de dizer as coisas nos dá um alerta de como podemos agir mais precisamente.

A entrevista foi concedida por videoconferência em 26 de junho de 2020. Confira.

Dr. Carlos Nery, infectologista referência de covid-19 no Piauí. (Foto: Roberta Aline/Cidade Verde)

Sapiência – Nos fale um pouco sobre infectologia e sua experiência nessa área tão importante para os dias atuais.


Dr. Carlos Nery – A infectologia é uma especialidade que não é das mais antigas, surgiu nos anos 80 – eu já tinha me formado, inclusive. Não tinha residência médica naquela época em infectologia, então eu fiz clínica médica. Logo depois fiz mestrado em doenças tropicais, e foi esse mestrado que foi reconhecido pelo CRM (Conselho Regional de Medicina) como título de infectologia. O começo da minha carreira foi exercendo a clínica médica e quando vim para o Piauí, em 1984, assumi o Hospital de Doenças Infecciosas, onde aprendi realmente a infectologia. E juntei a isso a atividade de pesquisa, já que a minha principal intenção em vir para Teresina foi essa. A gente não tinha muito espaço em Brasília. Eu me dedicava à Doença de Chagas nos estados de Goiás e Bahia, na área de pesquisa, e quando vim para cá tinha uma nova doença, uma epidemia recente, que era a leishmaniose visceral, o calazar, que estava grassando aqui. Daí mudei de área e comecei a me dedicar a essa nova doença. Mas ao longo do tempo várias doenças estavam acontecendo pelo Piauí, cada uma com sua época.


Ainda peguei casos de difteria, que hoje não tem mais, protegidos pela vacinação. Vi muita desnutrição, mas graças aos programas de apoio alimentar isso desapareceu. Vi muito tétano, até recentemente, e até hoje mesmo, por falhas na vacinação. E naquela época a mortalidade era muito grande, já que não tínhamos UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Tivemos muita malária na época da Transamazônica e da mineração por ouro em Carajás e Serra Pelada, eram multidões de pacientes que vinham para cá. O Piauí mesmo teve muitos casos de malária autóctone, mas muitos pacientes com malária grave vindos daquelas regiões. Depois, quando o garimpo artesanal foi proibido, eles migraram um pouco a Guiana Francesa, Guiana, Suriname e diminuiu bastante os casos em Teresina. Tivemos muitos casos de hepatite B também, que reduziu muito com a vacinação. Então surgiram outras doenças impactantes, o HIV, a aids, nos anos oitenta. Eu peguei o início da epidemia, que foi uma coisa trágica, pacientes chegavam e a expectativa de vida era de seis meses. Muitos morriam na primeira internação, pessoas jovens, gente muito inteligente que se foi. Depois veio a epidemia de cólera, a de dengue, descobrimos a hepatite C, e outras foram emergindo ao longo do tempo.


Mais recentemente tivemos duas epidemias de Corona, que felizmente não chegaram aqui, mas nos preparamos para isso: a Sars e a Mers. Teve a gripe aviária, que foi um susto enorme, inclusive boa parte da equipagem do Hospital Natan Portela foi por ocasião disso. Eu fui diretor desse hospital de 1999 até 2010, quando decidi me dedicar mais à pesquisa, àquilo que gosto de fazer realmente, que é Ciência e ensinar medicina, vendo pacientes diariamente.


A infectologia é uma das áreas mais ricas da clínica médica, porque ela envolve todas as demais especialidades. Mas, para finalizar as emergentes, posteriormente surgiram a zika, a chikungunya, encefalite do Nilo Ocidental e agora chegou a covid-19. Durante a década de 70, um pesquisador americano chegou a dizer que havia chegado o fim das doenças infecciosas, mas começou a série de revides. Isso mostra como a infectologia é uma especialidade muito dinâmica. As pessoas começaram a envelhecer, o transplante surgiu, o tratamento de câncer, mais longevidade e mais fragilidade para as pessoas, e as doenças infecciosas começaram então a se aproveitar dessas pessoas. Então, novas doenças para pacientes imunossuprimidos surgiram e novos tratamentos precisaram ser inventados. É uma especialidade rica e dinâmica e que exige muita atualização do profissional.

Sapiência – A covid-19 já infectou milhões de pessoas. As quarentenas estão sendo estendidas como possível solução. Você acha que chegará um momento em que os governos não mais estenderão essas quarentenas, principalmente pelo discurso da retomada da economia?


Dr. Carlos Nery – O Brasil tem dado um exemplo de fracasso no controle da pandemia de covid-19. Os países com orientação de direita, liberais, todos com a saúde pública frágil, tiveram uma ação desastrosa, mais ou menos a postura da Inglaterra e dos Estados Unidos, que é um dos países mais ricos do mundo, mas que o presidente atuou boicotando o programa de controle. E o nosso Governo Federal também é o principal boicotador das tentativas de controle da epidemia, que ainda são muito tímidas.


Mesmo considerando os governadores do Nordeste, as tentativas são muito frágeis, dado que não fazemos o dever de casa. Estamos tentando o isolamento de forma bastante limitada, com pouca colaboração da população, níveis de isolamento sempre baixos. Isso reflete de um lado a desinformação, a anticiência, o discurso dos empresários e o próprio discurso da Presidência da República, que carrega consigo um percentual substancial de pessoas muito influentes. Temos o despreparo cultural da população de compreender a mensagem científica. Estamos caminhando para uma situação fora de controle, com microepidemias povoando Brasil à fora, ciclos e ciclos sem nenhuma perspectiva de controle. A situação é mais preocupante porque a história do pico, do platô, tudo isso assumia duas culpas, primeiro que as condições de controle eram reduzidas, e também que existia, oculta, uma coisa chamada imunidade coletiva.


Quando um agente microbiano que gere imunidade chega em uma população, as pessoas vão deixando de ser suscetíveis àquela infecção e se tornaríam imunes. Com isso, vai se acumulando a população de pessoas resistentes e diminuindo a proporção de pessoas suscetíveis. É isso que podemos chamar de platô para as doenças que causam imunidade coletiva. Foi nisso que os cientistas começaram a estimar quando seria esse pico. E têm errado sistematicamente porque não depende só da estimativa, uma vez que ela falha muito, já que incorpora conceitos exponenciais; então qualquer mudança nesse número de reprodução básica, nesse expoente, gera uma repercussão enorme sobre os valores preditos. A mesma coisa de se jogar sinuca, um mínimo desvio na hora de atingir a bola pode fazer com ela atinja outras e outras. E a menos que seja um expert não saberá onde a bola vai cair. Os modelos têm isso, incorporam parâmetros que são muito vagos. Que variam muito com o tempo. Se atuamos com medidas com distanciamento social, principalmente o lockdown, então se faz com que toda essa previsão seja modificada.


Temos os parâmetros e as ações de controle. Como as medidas brasileiras são baseadas apenas em distanciamento social, não fazemos o outro braço tão ou mais poderoso que é a testagem em massa, não a testagem rápida, que não serve a não ser para estimativas de população sorológica. E o mais preocupante ainda é que estamos descobrindo que o teste rápido não mede imunidade. Não sabemos se existe imunidade. Aparentemente sim. Porque as pessoas raramente voltam a se infectar. Sabemos que estão deixando de serem suscetíveis para se tornarem imunes, mas a mensuração dessa imunidade é desconhecida. Sabemos que o anticorpo é só um dos componentes.


Tem um trabalho publicado acerca de um mês na Revista Cell mostrando que existe um outro tipo de imunidade mais apropriada para vírus, chamada imunidade celular, que controla a maior parte dessa resistência. Como os outros coronavírus mais antigos circulam na população geral, causando gripes, então essa imunidade celular parece que já existe e seria responsável por uma parte da resistência da população atual. Temos então vários cenários. Primeiro uma fragilidade nos números de controle, com um relativo descaso político; a dúvida acerca da imunidade duradoura e a fragilidade dos parâmetros. Tudo isso conduz para um cenário de muito desconhecimento do que virá no futuro. Não temos como dizer hoje quando vamos chegar nesse platô.


Por outro lado, há essa pressão enorme da sociedade como um todo para acabar com o isolamento, que afeta terrivelmente a produtividade, o emprego e a sobrevida das pessoas. Temos uma economia inteiramente voltada para bancos, para o mercado, então dificilmente o governo vai aceitar ajudar os mais pobres. A tradição brasileira é de que os pobres não são importantes.


Existe também uma pressão enorme junto ao prefeito e ao governador; pressão absurda para que eles cedam. E estão numa estrutura muito frágil, já não estão se baseando na flexibilização da economia com parâmetros. Se você perguntar qual o parâmetro do Piauí, teremos alguns indicadores, mas qual o ponto de dar o sinal? Não existe. Há esse comitê em que de um lado se escuta os empresários e do outro lado o corpo técnico e daí se tira uma decisão política, que é da intimidade do governo. Isso é muito ruim na minha opinião porque cria forças opostas. As pessoas que prezam o bem estar social, a vida dos seus parentes e amigos e a sua própria, de um lado, e do outro lado os que dependem do comércio.


Eu tenho impressão que se esses parâmetros fossem determinados com antecedência – “só vamos abrir quando o número de casos novos tiver caído pela metade” – tenho certeza de que todos trabalhariam para chegar nessa meta, como vários países do mundo já fizeram. E tem a lição por último desses países que já conseguiram sucesso no controle da transmissão, mas que têm rebote, surtos. São países com medidas restritivas fortes, uma população que colabora bastante, a China, Alemanha, Coreia, Cingapura e outros; assim que tem um rebote eles conseguem seguir e controlar. É imponderável dizer quando, vai depender muito do íntimo dos governantes. Depende muito das fragilidades, depende dos parâmetros para chegarmos no horizonte do fim dessa longa noite. Como as coisas estão colocadas, o cenário vai ser o pior, nós vamos acabar com o isolamento em plena epidemia e vai ser um trabalho perdido. E quem tinha que morrer, que não tem imunidade, vai morrer, já que não tem como as pessoas sobreviverem sem o isolamento aqui no nosso país. O cenário é bastante sombrio diante dessas forças que estão em jogo.


Sapiência – Que situação poderemos esperar para o Brasil e para o Piauí ainda neste ano? É possível estimar números?

(Foto: Roberta Aline/Cidade Verde)

Dr. Carlos Nery – A covid-19 depende muito dos fenômenos sociais, da pobreza, mas depende também de questões políticas. O mundo mostrou que é possível sim acabar com a doença com medidas de distanciamento. Eu não posso ser fatalista e dizer que vai ser muito ruim, porque há uma margem de ação da gestão dos governos no sentido de coibir a transmissão. Teria que ser feito um esforço que não foi tentado antes, um esforço muito maior, teríamos que partir para um lockdown de, no mínimo, duas ou três semanas de duração, com fechamento de fronteiras e testagem em massa. Acredito que hoje não temos a capacidade de testagem na dimensão que seria necessária. Para não ser inteiramente pessimista, digo que há esperança, mas que ela está nas mãos dos governantes.

Sapiência – Como melhorar o distanciamento social em regiões onde há uma resistência cultural?


Dr. Carlos Nery – É uma luta política e cultural. Nós temos que agir fazendo um esclarecimento educativo em massa das populações, fazer com que as mídias cheguem à população de lá, através da formação de dados, utilizando o exemplo de que é possível isso. Por trás de tudo isso está uma desesperança e fatalidade – “ah, não tem jeito e não podemos fazer nada”. Tem também a situação do prefeito Mão Santa, que se opõe, tal qual o presidente da República, às medidas de contenção da epidemia. Mas é possível sim com ações duras. Inclusive a justiça tem mostrado estar do lado das medidas de controle.


É preciso ter uma atitude muito decisiva e muito forte dos governantes. Nós temos que durante algum tempo sermos 100% saúde e 0% economia. Por que eu digo isso? Porque se nós fizermos isso, o horizonte no fim da epidemia é possível, se nós não fizermos isso o cenário é este: vamos ficar eternamente nessa noite escura, com a doença se tornando cada vez mais endêmica. E isso é um assunto que não é só eu que estou falando, está sendo discutido amplamente no mundo sobre qual é a perspectiva do futuro da covid-19.


Apesar de haver esse fatalismo, essa perspectiva ruim do ponto de vista das políticas públicas estabelecidas aqui dentro, há espaço suficiente para ação política dura e legal. Então depende da decisão, um pouco da personalidade, do apoio das pessoas esclarecidas: as universidades têm tentado pressionar o governador no sentido oposto, levando a mensagem da ciência para que ele se mantenha nisso, mas é preciso mostrar para ele que se nós não fizermos a coisa difícil que deveríamos ter feito a mais tempo, o cenário é esse que falei para você: desarmar tudo, voltar ao normal em plena epidemia, jogar fora todo o esforço que foi feito, quem tiver que morrer morra e o comércio voltar ficticiamente ao normal. E não volta.


A experiência nos demais países é que quando voltam, a economia em situação de transmissão não volta ao normal, a recessão continua. E aí nós teremos uma longa noite sem fim, de doença, transmissão, recessão e todo esse ciclo tende a se perpetuar com a doença que se tornou evidente e endêmica.


E as pessoas vão começar a se retrair; lembre-se que muitos empresários são pessoas em idade de risco. Pessoas idosas estarão todas envolvidas com isso. Vamos lembrar que muitas famílias vivem da renda de seus idosos e uma vez com eles perdidos, a renda familiar cai, o que sinaliza para um cenário social nefasto. As pessoas pobres vão ter que sobreviver da maneira que for disponível, se for através da violência, que seja.


Nós entramos aqui como se fosse uma perspectiva de Roma pós-barbarismo, de escuridão, se não houver medidas desse tipo. Ou então vamos torcer para que a ciência se afirme e que em dois, três ou quatro meses a vacina esteja aí, então a noite será mais curta. Mesmo que ela não seja muito efetiva, mesmo que nem todos se vacinem, ela é capaz de gerar imunidade de grupo a ponto de se induzir o final da epidemia.


São essas cartas que estão na mesa, muita biologia, epidemiologia, muita política envolvida com componentes sociais, e muita esperança na ciência, tecnologia e no que está por vir. Mas eu não tenho bola mágica, é preciso dizer isso claramente: os modelos existentes atualmente não são capazes de responder isso. Se a gente fizer uma previsão no condicional, a resposta seria uma. Se a gente fizer uma resposta condicionada às medidas políticas de saúde pública que vão ser tomadas mais adiante, a resposta seria outra. Mesma coisa do aquecimento global e mudanças climáticas. Depende essencialmente do que nós fizermos daqui alguns dias.

Sapiência – Houve uma pesquisa publicada na China que investigou 37 pacientes sintomáticos e 37 assintomáticos e descobriu que a presença dos anticorpos, especificamente o anticorpo IgG, mostrou declínio acentuado em mais de 90% dentro de dois a três meses. Como você vê essa publicação?


Dr. Carlos Nery – A ciência tem sempre que caminhar mais, mas também não é assim. Veja só, como eu tentei esboçar para vocês, existem duas principais respostas imunes: cada uma delas se adequa a um tipo de agente agressor ou tipo de infecção. Há a imunidade chamada humoral, que são os anticorpos, e a imunidade celular, que são as células propriamente ditas que atuam contra esses patógenos. Para alguns tipos de patógenos como por exemplo a tuberculose, o calazar, câncer, é a principal imunidade, do tipo celular.


Como é que a gente descobre? As pessoas que tiveram tuberculose têm anticorpos depois de algum tempo? Não têm, mas são imunes. As pessoas que tiveram leishmaniose têm anticorpos durante a doença, depois de passar alguns meses, um ou dois anos, ela perde anticorpos mas tem uma forte imunidade do tipo celular, e a doença dificilmente volta. Mas a imunidade humoral se faz para alguns tipos de doença. Por exemplo, sarampo, que é um vírus, depende muito da imunidade do tipo humoral, de anticorpos. Hepatite B, depende basicamente de imunidade humoral. E no coronavírus? Não sabemos, como falei, o artigo da revista Cell, que saiu há cerca de um mês, mostra o contrário: que a imunidade duradoura parece ser a imunidade celular, que não é medida pelos anticorpos. Então esses anticorpos (da pesquisa da China), que estamos vendo evanescerem, o mais ou menos esperado seria um déficit do tipo celular, o que não quer dizer nenhuma tragédia. É preocupante porque mostrou uma certa reação oposta entre a quantidade de vírus e a quantidade de anticorpos. As pessoas que têm mais anticorpos têm menos partículas virais e a eliminação do vírus é mais rápida. E o contrário acontece.


Quer dizer que são os anticorpos que estão eliminando os vírus? Também não, porque a imunidade humoral depende muito da imunidade celular, é a imunidade celular que segura a imunidade humoral forte, porque ela estimula as células chamadas células B, os plasmócitos, a produzirem anticorpos. Então, eu acho que apesar desse susto que houve aí, essas posições e informações que mostram a viremia, a quantidade de vírus eliminado talvez seja mais longa do que nós estamos esperando, o que implicaria no tempo de quarentena. Eu acho que a coisa não é tanto assim não, no meu pensamento e impressão, evidentemente dependente de pesquisas futuras, de que é a imunidade do tipo celular a que controla a replicação viral, e acho que sim, as pessoas se tornam imunes, os fatos têm mostrado isso. A literatura é extremamente escassa de mostrar recidivas de pacientes com a covid-19.


A gente vai encontrar um ou outro relato, uma coisa absolutamente mínima diante dos casos que já aconteceram. A minha impressão é que esse trabalho, embora seja importante, é um trabalho desastroso para se pensar na montagem de uma imunidade coletiva a partir da imunidade atual. Eu acho que ela está se formando sim, existem algumas evidências que a gente nota que está se formando, e tem a esperança dela ser complementada através de uma vacina, que pode sair em pouco tempo. Inclusive o Brasil, por ser um país hoje que está contribuindo com cerca de 20% dos casos novos no mundo, é o principal alvo de estudo dessas vacinas. O Brasil está participando, como vocês viram, do ensaio dessa vacina de Oxford e outras virão para serem testadas aqui também.

Sapiência – Ainda sobre essa polêmica entre a medicina e o discurso de retomada econômica, como é que podemos adotar medidas ou criar uma consciência coletiva entre esses dois grupos?

(Foto: Roberta Aline/Cidade Verde)

Dr. Carlos Nery – Eu acho que é possível sim, mas nós temos que fazer um trabalho imenso de esclarecimento da população e das lideranças. Aí o papel da FAPEPI entra. Se nós conseguirmos convencer – falando em nome da ciência – os governantes e empresários de que nós precisamos conter a pandemia para voltar a ter uma vida normal, um novo normal sem grandes danos, nós estaremos com a batalha ganha. Agora é preciso, primeiro, que essas pessoas acreditem nessas informações e que elas tenham confiança. Essas lideranças que estão tomando medidas de contenção, são imensamente populares, elas têm a concordância da grande maioria da população. Eu não conheço nenhum inquérito ainda de avaliação pela população dos governantes com as medidas que tomam, mas a minha impressão é que é muito favorável às medidas de contenção.

Claro que tem as pessoas que sofrem mais com isso: as que precisam de emprego, algumas que dependem desses empregos que vão voltar com a atividade econômica, por exemplo a construção civil, uma fonte importante de empregos, e precisamos dos empresários. E tem essa linha desse pessoal que é contra qualquer coisa que seja de investimento social. Mas eu acho que a maior parte da população apoia as medidas de controle, e se elas forem ensinadas pelos próprios governantes, e se eles próprios tiverem consciência de que nós temos que terminar essa longa noite, nós temos que fazer um lockdown agora, duro, para que amanhã o dia amanheça. Se nós conseguirmos fazer isso, se eles se convencerem disso, o dia vai amanhecer e nós voltaremos ao novo normal. Mas enquanto as coisas estiverem sendo feitas à meia-boca, com 40% de isolamento social, sem testagem em massa, não vai amanhecer o dia.


Sapiência – Então precisamos realmente de um lockdown, e também que os partidários da retomada econômica, por hora, aceitem o discurso científico. Avançamos juntos assim?


Dr. Carlos Nery – Exatamente. Reparem que por trás disso tem um discurso anticiência, então faz parte da estratégia dos grupos de extrema-direita a difamação da ciência. A venda de produtos, como a cloroquina, faz parte dessa imensa tentativa, que vai de fazer as pessoas voltarem à atividade normal de qualquer jeito, até a deslegitimação da ciência. E as consequências serão enormes, porque uma das consequências do descrédito na ciência é não vacinar. Lembrem que os movimentos anticiência, terraplanista e antivacina estão todos associados. E qual é o resultado disso? Quando for feita a vacina ninguém vai se vacinar porque ninguém acredita na ciência.

Então a luta pela credibilidade da ciência é fundamental, essencial. Todas as entidades que trabalham com ciência, das instituições acadêmicas às instituições de fomento como a FAPEPI e outras, têm que nos ajudar a vender esse peixe, a fazer esse convencimento às autoridades. Nós temos tudo para acreditar na ciência; a penicilina existe graças à ciência, o tratamento de câncer existe graças à ciência, o bem-estar de vocês, sem infecções nesse momento, de estarmos vivendo bem no ar-condicionado, conversando através de vídeo, é a ciência. Então nós temos que retomar o convencimento de que a ciência é fundamental e que existe uma ação política deliberada por setores financiados por gente muito rica, no sentido de deslegitimar a ciência, para permitir que continue o status-quo.


Os dois principais governantes no Piauí são pessoas esclarecidas, o governador e o prefeito de Teresina. Mas é preciso agir mais. Foi uma infelicidade o prefeito ter assinado um protocolo médico, como aconteceu semana passada. Isso é de uma gravidade imensa, ele não tem nenhum conhecimento científico para isso. O prefeito assinou um protocolo médico que retomou a indicação inteiramente fora da ciência, de uso de medicações que têm tanto efeito quanto teia de aranha e asa de morcego.


É preciso que as pessoas sejam imensamente esclarecidas e que se seja honesto com a população. Essa honestidade é fundamental, ninguém está ali para empurrar falsas drogas goela adentro das pessoas. Elas saem de casa para procurar um médico na esperança de que vai ser prescrito para elas um remédio eficiente, não que vão ser enganadas com remédios que são falsas promessas. Então eu acho que os governantes são esclarecidos, o prefeito tem feito um esforço imenso diante da fragilidade de um governante, diante de tantos interesses. Acho que ele escorregou nessa agora, uma falha que não sei nem porque, quais os fatores políticos que levaram a isso. Temo que o governador escorregue na mesma coisa, sinto o governador mais pressionado ainda.


Tenho um irmão que é empresário e ele fala muito a linguagem dos empresários junto ao governador, que a coisa é muito poderosa, e ele está sujeito à fidelidade das pessoas, seus eleitores. Mas é preciso acreditar nisto: se ele fizer o lockdown, se nós conseguirmos conter a epidemia como a China conteve, sendo duro, amanhã nós podemos retornar gradativamente a vida normal com produtividade econômica, por isso que eu tenho me disposto sempre que me chamam para esses diversos fóruns, não tenho nenhum benefício pessoal com isso, meu benefício é traduzir uma linguagem de convencimento da ciência para que as pessoas possam, com esses conhecimentos técnicos, chegar até o final da viagem.


Imagine vocês, se um piloto de avião fazendo uma viagem qualquer resolvesse escutar o que dizem os passageiros – “vamos por aqui ou por ali? Aumenta ou diminui a velocidade? Vamos descer onde?”. Isso não pode acontecer, e é a mesma coisa que está acontecendo hoje. O piloto são os cientistas e profissionais de saúde. Deixemos com eles os conselhos e não vamos fazer improvisos baseados na opinião de empresários.


Sapiência – O senhor estimou entre duas e três semanas necessárias de rigidez nas medidas. Mas quanto tempo realmente levaria esse lockdown para se ter o controle da pandemia no Piauí?


Dr. Carlos Nery – A resposta foi dada por muitos países que conseguiram chegar aí, então é preciso que façamos uma investigação da dinâmica de redução da transmissão com as medidas extremas de lockdown e por exemplo, acompanhar a curva chinesa. Isso pode levar algumas semanas. Eu acho que a gente vai perceber uma queda bruta da transmissão da doença com poucas semanas após o início das medidas extremas, por quê? Porque a doença é transmitida por pouco tempo, é transmitida nos dois primeiros dias de incubação e depois durante, maximamente, de 5 a 7 dias.


A estratégia é conseguir bloquear a transmissão das pessoas através de medidas de contenção social rigorosa e de muita educação e se possível comprar as máquinas para fazer testagem em massa aqui no estado do Piauí. É o componente que tinha nos outros países que o Brasil negligenciou. Então, dependendo da força com que nós apliquemos essas medidas, acho que a gente obtém isso num cenário de duas ou três semanas. Na medida em que a gente perceba que há uma redução substancial da transmissão, isso retroalimenta as medidas de controle, a vontade de acabar logo com isso – “está dando certo, quero acabar logo, estamos chegando lá” – isso gera um clima, quase um clímax coletivo no sentido de todo mundo dar as mãos para acabar logo com essa história.

Mas isso vai ser percebido rapidamente ao passo que as medidas forem sendo tomadas e a que a gente comece a acompanhar o número de casos. Eu nem me filiaria muito na proporção de sorologia testada, a minha preocupação maior é o número de casos que estão sendo diagnosticados com síndrome respiratória aguda grave, com ou sem teste positivo. Esse é um retrato de transmissão da doença, isso é fácil de diagnosticar. Começa-se a mapear as regiões de transmissão mais intensa, onde as medidas têm que ser redobradas, aí podemos acompanhar rigorosamente cada situação no sentido de que se a gente fizer um relaxamento a doença vai retomar. É uma coisa muito dinâmica, mas eu acho que os primeiros resultados já seriam obtidos após uma semana.


Com uma semana nós veríamos que está sendo controlada, acho que haveria então uma retroalimentação positiva no sentido de continuarmos as medidas para acabar com essa longa noite, todos juntos, antes que morra mais gente e que as pessoas passem fome por causa disso. É preciso ser muito enérgico agora para isso, essa é a minha perspectiva. Acho que com três semanas os resultados seriam notórios, e aí seria um momento de todos avaliarmos do ponto de vista técnico, com modelos matemáticos, tentando dar uma assistência junto à percepção política da população, e então teríamos um cenário bastante favorável e totalmente oposto ao atual.


O Piauí tem algumas vantagens, é preciso dar crédito aos governantes. Lembrem que a situação do Piauí é bem diferente dos nossos vizinhos, Ceará e Maranhão, que estão sofrendo muito mais do que a gente. De certa forma nós retardamos a curva epidêmica, mas infelizmente começamos a ceder à tentação de relaxar antes da hora. As pessoas estão cedendo naturalmente: agora nessa semana as pessoas começaram a dizer – “olha, eu perdi parente, perdi amigo” – então essa dor está sendo sentida agora, estamos aprendendo à ferro nesse momento.


Se tivéssemos entendido isso antes, a população como um todo, através de medidas educativas muito mais poderosas, talvez já estivéssemos em um outro cenário e com tempo suficiente para fazer isso, mas nós temos que passar pelo lockdown, não há perspectiva nenhuma de termos algum horizonte à curto prazo sem lockdown.

Sapiência – Como tem sido a situação de ocupação e da quantidade de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) nos municípios do interior?

(Foto: Roberta Aline/Cidade Verde)

Dr. Carlos Nery – Se o estado e os municípios não tivessem aumentado o número de leitos, nós já teríamos saturado, as pessoas já estariam morrendo sem assistência de ventilação. Mas à medida que a pandemia foi aumentando, os governos municipais e estadual foram conseguindo estabelecer a criação de leitos de UTI de modo a atender essa demanda. Então foi um crescimento mais ou menos paralelo, de uma certa forma de 20% a 30%. Mas se a gente não chegar a conter a epidemia pode ser que essa capacidade dos leitos se extinga e aí sim nós tenhamos uma situação parecida com Guayaquil no Equador, onde as pessoas começaram a morrer em casa sem assistência, que é o caos que todos temeram no início da epidemia.

Sapiência – O que o senhor acha da radicalização do uso de medicamentos no combate à covid-19? Como você vê a ação política nas decisões de tratamento?


Dr. Carlos Nery – É difícil a gente compreender por que nós estamos transitando entre a ciência e a política, mas tem que fazer uma retrospectiva histórica disso daí. Começou com o Didier Raoult, aquele polêmico pesquisador francês, não ortodoxo em seguir o método científico. Ele ficou a favor da cloroquina, que tem ação antiviral in vitro, mas vários compostos têm também ação antiviral, e aquilo foi replicado pelo presidente Trump, dos Estados Unidos, como a droga mágica – “toma! Acabou a epidemia, ninguém morre”. O que aconteceu aqui no Brasil é que se repetiu tudo o que se falava lá, e se fez a mesma coisa. Isso levou a um profundo partidarismo político pela máquina de propaganda política de extrema direita, muito através de fake news. Ela funcionou maravilhosamente bem nesse sentido. As pessoas estavam repetindo a mesma coisa porque as pessoas são muito limitadas. Contra a pesquisa científica alguns diziam – “Não dá tempo! Não dá tempo de fazer ciência!” – como se dissessem – “Não podemos nos aventurar. Não sabemos direito onde estamos indo. Nós estamos aqui na floresta, é por aqui e nós vamos!” – baseados em informação muito frágil, apenas com uma informação de utilidade antiviral in vitro.


Passou a ter uma conotação fortemente política em que as pessoas que eram favoráveis ao emprego, às empresas, mobilizadas por setores bastante específicos da sociedade, começaram então a tentar vender essa pauta. Os médicos estão mais ou menos uniformemente aceitando a história da cloroquina, por várias razões, na minha visão. Primeiro, o pensamento político dos médicos é erroneamente de direita, bastante à direita; e sempre foi, como muitos setores da elite. Os médicos só são mais explorados que o pessoal da justiça porque para conseguir ganhar o que eles ganham, eles precisam sacrificar muito a suas vidas pessoais. Mas de uma parte ou outra, é um dilema que se empurrou na cabeça dos médicos. Numa dificuldade de acesso de conhecimento científico puro.

Na verdade, o conhecimento médico se dissemina horizontalmente, de ouvido a ouvido. Nós temos o livro anual de medicina, e também o livro de orelha que é um médico falando para outro – “você viu isso! Você viu aquilo!” – e essa disseminação horizontal entre os médicos, sem checagem, sem consulta, e que era feito antes através de congressos médicos, de livros-textos ou de mensagens, de visitas periódicas dos principais sites e instituições de pesquisa como a Sociedade Brasileira de Infectologia ou a Associação de Medicina Intensiva, isso foi jogado de lado, e o livro de ouvido passou a preponderar entre os médicos.


A cultura médica, que já era propensa a tomar essas medidas por conta do condicionamento político, passou também a acreditar que aquele novo livro chamado WhatsApp, que iguala leigos e médicos, estava disseminando notícia verdadeiras, e olha que eles veem de uma forma bastante convincente e emocional. Segundo, no meu entendimento existe um dilema de decisão. O médico imagina o seguinte: se o remédio está sendo pesquisado em algum lugar do mundo, é porque tem rumo, tem estudo in vitro, quem sabe ele não funcione.


Terceiro, os remédios não têm efeitos colaterais, logo eu vou prescrever para o meu paciente. Essa

estrutura de pensamento dos colegas médicos, eu imagino que seja assim que funciona, faz com que na hora H se prescreva alguma coisa que não está garantida pela ciência, tomando uma recomendação não científica. Onde é que está a falha? Está na terceira premissa. Porque quando se diz que a cloroquina não tem efeito colateral ou que tenha poucos efeitos colaterais, eles estão se referindo a pessoas jovens que têm malária ou que tenham algumas doenças reumáticas. Não estão se referindo a uma doença muito grave com inflamação do coração e inclusive de outros órgãos, com quadros totalmente diferente dos demais, que tem sim o potencial enorme de morte súbita. Essa relativização de efeitos colaterais é o ponto fraco do argumento.


Quando a cloroquina saiu de cena e foi banida nos Estados Unidos, sobrou a ivermectina. – De onde vem a ivermectina? É um vermífugo utilizado em tratamento de carrapato, muito utilizado em medicina veterinária, largamente utilizado para isso, a gente dá muito para tratar verme. – Ela também tinha estudos in vitro mostrando que tinha ação antiviral. Daí, teve uma publicação, uma única publicação, uma pré-publicação que ia ser feita em uma revista importante, mas também um trabalho coordenado pela mesma empresa que fez aquele estudo que foi retirado da The Lancet. Era uma empresa que estava utilizando inteligência artificial para alocar paciente para os estudos através de métodos que não conseguiam replicar mais. E a gente não sabe se por trás disso existia malícia.


O fundamental da ciência para controlar esses conhecimentos que não segue as regras é você saber como os dados foram coletados e como a população foi estudada. Esse estudo, também pré-publicado quando teve o escândalo da empresa, também foi retirado e não está mais disponível para ser baixado. Eu tenho em meu computador. Todo o conhecimento que tem é isso e a noção de que estão sendo feitos estudos clínicos com esse remédio. E estão sim, é possível, inclusive, que no Piauí também se possa fazer estudos. Mas se fazer um estudo é diferente de usar, na prática. Principalmente fazer uma recomendação – uma recomendação – para médicos que pouco tempo têm de estar estudando, de estar lendo esses artigos. A tendência deles é rapidamente incorporar em seus receituários. Eles já incorporaram a cloroquina, agora a ivermectina e surgiu a heparina.

A heparina é um anticoagulante, e tem uma lógica no uso da heparina. As pessoas que têm um quadro grave de covid passam por um estado de hipercoagulabilidade no sangue, com uma tendência enorme para formar trombos tanto no tecido pulmonar como em grandes vasos, com casos de derrame, infarto etc. As pessoas acham que se você usar um anticoagulante, você vai parar o processo, o que também é falso. Primeiro porque não se tem estudo sobre isso. E segundo que esse processo de coagulação já é conhecido para outras doenças que também apresentam estado de coagulabilidade, como meningite meningocócica, por exemplo. E o uso de heparina é muito contestado, muito discutido, nesses cenários.


Não existe recomendação nenhuma por sociedades internacionais de hematologia e hemoterapia em usar a heparina para esses quadros. Mas, as pessoas nesse cenário de muita angústia, de muita emoção, de muita politização, acabam por prescrever. E foi isso que o protocolo do município adotou sem demonstração nenhuma, com riscos enormes de que as pessoas sangrem abundantemente, terem risco de vida com o uso inadequado de heparina, por um estudo que não foi demonstrado.


Esse coquetel de que – “já que não tem o que fazer, existe uma chance pequena de que ele funcione, e presumo eu de que não exista efeitos, então eu vou jogar isso aí” – contribuiu que o município lançasse aquele protocolo, que eu sou muito crítico. E no dia seguinte saiu o estudo mostrando que a prednisona era levemente vantajosa para pacientes moderadamente enfermos a gravemente enfermos e o que fez o município? No dia seguinte saiu um protocolo estendendo o uso do corticoide, da dexametasona, para pacientes com doença leve. Lembre-se que a dexametasona pode reduzir as defesas do organismo, com o risco de transformar uma doença que seria branda, através da redução da imunidade celular principalmente, em uma doença devastadoramente grave, por isso que os ensaios clínicos são necessários.


Nós temos um princípio que é importante, que todos os médicos tenham em conta, que é o princípio de não se fazer o mal. E todo remédio faz mal, o médico só está autorizado a prescrever quando ele faz mais bem do que mal naquela condição específica, e se ele não faz bem naquela condição específica, ele com certeza só fará o mal. É isso que tem que ser difundido. E é importante entender que quando surgem protocolos que não especificam exatamente de onde vem aquela informação, de onde vem aquele efeito vantajoso, nós estamos vendendo ignorância.


Quando faço uma declaração para o meu aluno de medicina que remédio ele vai usar, eu digo: “você vai usar esse remédio porque aconteceu isso, a literatura diz isso, e aquilo está publicado em tal lugar”. Isso é particularmente obrigatório em todas as recomendações de órgãos oficiais, essa recomendação fugiu, inclusive, da recomendação da Sociedade Brasileira de Infectologia. Quando existe uma recomendação institucional, o erro que seria de um médico, com o único paciente a quem está prescrevendo aquilo, ou aos poucos pacientes, passa a ser multiplicado por todos aqueles que vão ler aquele diagnóstico.


Têm um efeito devastador esses protocolos. Lembrem-se que no começo, aqui no Piauí, teve uma onda de um protocolo, sem nenhuma fundamentação, só no professor WhatsApp, e teve um efeito que ainda não chegou. Ainda vamos descobrir o efeito devastador que isso teve. Aí vem uma instituição com prestígio, do porte do Município de Teresina, composto por pessoas que tenho maior estima, que são colegas, e eu não sei por que razão o prefeito foi o primeiro a assinar. Ele não é médico. Será se esses colegas não foram coagidos, por autoridades, pelo empregador deles, a tomarem essas medidas?


É muito preocupante. Acho que é um assunto gravíssimo porque ele desafia a ciência, e nenhum médico está autorizado por nenhum conselho de medicina a utilizar um remédio superfluamente, levianamente, como está acontecendo agora. Ele tem que ter bases sólidas. Vamos imaginar que todos nós somos pacientes no consultório médico, ninguém está indo para lá para receber prescrição leviana, não estamos indo lá para receber asa de morcego e teia de aranha. Vamos confiar em um médico que vai trazer benefício e não em um médico que vá trazer malefício. Tudo isso cria muita gravidade nesse fato, nessa recomendação, e desafia as instituições.


Nós somos um país em que as instituições são muito frágeis, elas têm que se fortalecerem e se pronunciarem agora. É hora dos conselhos de medicina se pronunciarem sobre isso, sobre esse fato da Prefeitura de Teresina. Mas há um princípio de debochar da ciência, de não dar importância para a ciência, é preciso, então, que as instituições, o Conselho de Medicina, o Ministério Público, o Poder Judiciário, e as pessoas se mobilizem.


Se você for ao médico e ele prescrever sem sua autorização um remédio que é supérfluo e que tem o potencial de lhe fazer mal, todos os pacientes têm direito a processar aquele médico e de serem compensados por isso. A gente monta um estado de direito, baseado não só nas ações institucionais, mas também nas ações individuais. É preciso a sociedade reagir a isso, porque é uma tremenda ameaça, nós estamos abrindo o dique de um vale tudo imenso, com carimbo institucional, de instituição muito respeitável. Então, é preciso que haja uma ação para que esse protocolo seja retirado o mais breve possível e que nós o façamos na linguagem científica, que gere confiança na população, nos usuários do sistema, e não ilusões.

Sapiência – O grande problema do discurso anticiência é ele sair da boca de pessoas que estão em situação de poder. Como dimensionar isso? É possível haver mais espaço para que se popularize os saberes médicos? Como vê o Ministério da Saúde?


Dr. Carlos Nery – A Ciência é neutra, ela não tem partido, na verdade ela é violada, é agredida, por qualquer setor autoritário. À direita ou à esquerda, onde houver ditadura, a ciência vai ser o primeiro alvo desses interesses. E agora, por interesses econômicos, que não são necessariamente autoritários, está sendo violada.


Se a ciência diz alguma coisa que é contra os interesses de A ou B, então vai estar do outro lado. Começa-se a politizar um sistema em que as suas regras de liberdade devem ser as mais neutras possíveis. Ela está sujeita a todas as influências externas. A ciência não vive dentro de um convento, ela está sujeita às influências da sociedade, financiamento, modos políticos etc. Mas ela ainda é o melhor sistema existente dentro disso tudo. O Ministério da Saúde não age tecnicamente. Como existe uma hierarquia militar, ele dá uma ordem para o militar, que prefere submeter a sua hierarquia militar à violação da verdade que repassar o conhecimento científico para a população. Foi o que aconteceu com os ministros anteriores. Quando veio um ministro que impôs sua hierarquia militar sob recomendações médicas, o que repercutiu aqui no Piauí, aconteceu a determinação do ministério de liberar a cloroquina. á que ele fez lá, vamos fazer cá, independentemente de qualquer tipo de confirmação ou de verdade científica.


Há naturalmente uma anomalia cercando a ciência e tirando ela do seu eixo por conta de interesses políticos. Eu diria que a cloroquina em sua simbologia, que vem com todos esses remédios que vem por trás, é um escorpião que envenenou a ciência, que é o melhor sistema que temos até hoje. Veio o capitalismo, que não teria sido possível sem a ciência, e tem sido todas essas inovações, tanta vida boa. Mas, nós estamos voltando à Idade Média, a um retrocesso grande, por conta desses interesses que fazem parte de um conjunto de ações econômicas. E aí os filósofos e economistas de larga escala sabem que nós estamos vivendo uma crise do capitalismo, enorme, muito perigosa, que reduz a sua replicação, e eles não vão perder replicação, a tendência do capitalismo, como sistema, é se replicar a despeito das pessoas.


Os seres humanos são hoje indivíduos secundários diante dos interesses desse grande sistema chamado capitalismo. Daí essa utilização dos governos, dos países, do controle integral dos países que são do sistema capitalista. O que nós estamos vivendo com a covid-19, com essa discussão toda aqui dentro, é um pequeno reflexo da agressividade da luta entre o capital e os seres humanos. Diria assim tentando ser um pouco mais filosófico.


Sapiência – No senso comum a doença continua sendo um mistério. Por que ela se manifesta de maneiras tão diferentes? Em que medida a medicina, a ciência, conseguiu avançar no que se refere ao conhecimento acerca da covid-19?


Dr. Carlos Nery – Nem tanto, nem tão pouco. A medicina, nestes seis meses de doença, tem feitos extraordinários de diagnóstico. Houve um avanço admirável. Além disso, nós somos capazes de aplicar o conhecimento a partir de outra doença. A base da covid não é única, ela não surgiu de repente, – o que chamamos de patogênese –, embora ela tenha suas pinceladas únicas, peculiares.

Por exemplo, essa grande capacidade de fazer tromboses também acontece em outras doenças. A trombose no pulmão é muito da covid, mas também é da gripe grave, da influenza grave, uma coisa muito parecida com ela. Esse fenômeno da hiperinflamação, da resposta inflamatória exagerada e localizada já era conhecida antes. Entrando num campo de muita, de muita imaginação, eu diria que grande parte da resposta se deve à imunidade, às experiências imunes anteriores, ou seja, experiências com coronavírus similares. Essa imunidade cruzada parece existir e foi o que o estudo da Cell mostrou.


Nós estamos todos habituados a escutar pessoas dizerem estão com uma gripe forte, dor de cabeça, febre alta, e o cônjuge ou as crianças estão com sintomas brandos. Então existe uma resposta individual de cada pessoa. Essa resposta está ligada a várias mutações, várias proteínas que fazem parte do anticorpo imune, mas reside também no complexo principal de histocompatibilidade. Para ter uma resposta imune, é preciso que o microrganismo agressor seja engolido pelas células da imunidade, as fagocitárias, e ele é então digerido em pequenos fragmentos de proteínas, os peptídeos, que são colocadas dentro da molécula do sistema maior de compatibilidade, MHC, e então faz uma espécie de um vale e é apresentado a uma célula chamada linfócito T, que vai reconhecer só aquele peptídeo baseado na similaridade da identidade genética daquela resposta. Então cada indivíduo tem o seu MHC, que é peculiar dele. Reconhecendo aquele peptídeo é capaz de montar uma resposta específica para ele. É assim que a imunidade se faz.


Como cada peptídeo depende de cada apresentação de antígeno, se apresentação é bem feita, isto é, se a força física de interação entre o linfócito CD4 e a célula for alta, a resposta é eficiente. Por isso existe uma possibilidade de que a resposta do coronavírus não seja mediada só por experiência de imunidades anteriores, mas também pela peculiaridade genética de cada indivíduo. Ainda não temos as respostas para cada dúvida sobre o comportamento do vírus, mas em comparação a outras doenças, a coisa mais ou menos se repete, como a influenza por exemplo, as mesmas pessoas que têm risco para a covid estão em risco para influenza. Tem uma coisa que está em comum com essas doenças que nós não sabemos ainda, ainda estamos aprendendo e certamente vamos aprender. A ciência é fascinante!

Sapiência – Como são as mutações do vírus? Você pode explicar um pouco sobre isso?


Dr. carlos Nery – É uma pergunta é muito interessante e objeto de estudos muito intensos para tentar esclarecer o genoma do vírus, a sequência de RNA nucleotídeos e a resposta do hospedeiro ou a transmissão, mas não há uma resposta conclusiva ainda. Vários estudos sugeriram que têm variantes diversas. No Brasil têm muitas variantes, mas não tem nenhum estudo conclusivo para dizer qual variante tem maior transmissibilidade ou que tenha maior gravidade da doença.


Sapiência – Há possibilidade de que pandemias se tornem mais comuns no futuro?


Dr. Carlos Nery – Bom, este é o capítulo das doenças emergentes e reemergentes. Como nós vimos nos anos 70, os cientistas diziam que as doenças infecciosas iam acabar, e aí surge a primeira e um conjunto de doenças que vieram adiante. A que se deve isso? As doenças sempre emergiram, isso não é de hoje, elas são muitas vezes adquiridas de animais que estão no meio ambiente ou das pessoas através de mutações ou através de outras origens que não são necessariamente microbianas.

Por exemplo, uma doença emergente, gravíssima, que a gente pouco dá atenção são os acidentes de motocicleta. É uma doença claramente emergente, letal, que como não é causada ou transmitido por um mosquito, não damos muita importância.


E outras virão. Virá o aquecimento global com suas doenças todas, doenças por causas físicas, desmoronamentos, enchentes, novos mosquitos aparecendo, novos microrganismos. Tudo isso é inevitável e vai acontecer em curto prazo.

Mas temos marcos importantes, um que podemos sublinhar foi a queda da União Soviética. Apesar de todos os problemas que eles tiveram, de desenvolvimento de ditadura por conta do regime comunista, havia uma barreira para o liberalismo enlouquecido que nós vivemos hoje. A queda da união soviética foi muito grave, toda a saúde pública se desarticulou, no mundo inteiro, não foi só lá naqueles países que tiveram realmente crises econômicas graves, mas o mundo inteiro relaxou as medidas de saúde pública, facilitando que esses controles tenham sido diminuídos.


E temos também a destruição em massa do meio ambiente, destruição de árvores, invasão de espaços naturais, populações crescendo e migrando em meio à falta de regramento e tudo isso temperado por uma imensa mobilidade da população, fazendo com que uma doença rapidamente se espalhe pelo globo, como nós vimos agora com a covid-19.


A covid-19 não será a última doença emerge=nte letal que a humanidade está experimentando. Nós já passamos pela peste bubônica, no século XIV, quando milhões de pessoas morreram. Nunca mais tivemos uma coisa dessa magnitude, mas nada impede que outro patógeno apareça para os quais nós não temos tratamento em uma velocidade hábil e a humanidade pode voltar a sofrer essas situações. É preciso rediscutir o retorno da saúde pública, os meios de prevenção, enfrentar o gigante, esse monstro que nos engole que é o capitalismo selvagem e que está tomando o lugar dos seres humanos. Precisamos ter uma medida macro, global, social­­­­­ e defensiva dos seres humanos, independente de ideologia, e vigiar as fronteiras, reduzir a agressão ao meio ambiente. Precisamos aprender com esse momento de esfriamento da economia em que a terra ficou mais limpa, e os agravamentos ao meio ambiente diminuíram bastante, que a mobilidade da população diminuiu bastante, é possível viver com um cenário desses?


Temos que reinventar o futuro com esse novo normal não sendo apenas um novo normal, de utilizar máscaras ou de um certo distanciamento, mas de realmente dar uma diminuída nesse monstro que ameaça todo o nosso planeta.∎

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