Professora doutora Lilian Catenacci levanta questões para reaprendermos que quanto mais diverso, mais saudável é o meio ambiente
Ganhadora em 2021 do prêmio “Para Mulheres na Ciência” (For Women in Science) e doutora em Epidemiologia Viral pelo Instituto Evandro Chagas (PA), Lilian Catenacci consegue antever e prevenir através de suas pesquisas situações como a que originou a pandemia da covid-19.
Dedicada em acompanhar de perto a saúde de animais selvagens e domésticos na tentativa de explicar a dinâmica das doenças em seres humanos, ela traz à tona o que já deveríamos ter aprendido com nossa evolução: diversidade é saúde!
Destacando como a interação entre pesquisas tem sido primorosa no Piauí, a pesquisadora, docente da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e de programas de pós-graduação, atua também na coordenação do núcleo temático em Agravos Emergentes Transmissíveis do Centro de Inteligência em Agravos Tropicais Emergentes e Negligenciados (CIATEN).
Em conversa com a Revista Sapiência, Lilian divide suas experiências e expectativas, fazendo alertas que são fundamentais para pensarmos o futuro deste planeta e de todos os seres vivos.
Sapiência: Olá, professora. Muito obrigado por ceder um pouco do seu tempo para essa entrevista. A gente queria começar falando um pouco sobre uma de suas linhas de pesquisa, a Saúde Única. Considerada uma linha muito importante nesse momento atual, com a pandemia que enfrentamos. Porém as pessoas não conhecem muito sobre esse assunto. Você pode explicar um pouco para a gente como você definiria a área da Saúde Única.
Lilian Catenacci: Muito obrigada pela oportunidade também, para a gente é uma felicidade como pesquisadora poder levar informação para outros pesquisadores e para a sociedade em geral. Saúde Única nada mais é do que a integração entre a saúde do meio ambiente, a saúde dos animais e a saúde dos animais humanos, que somos nós. Então, com essa integração não olhamos a saúde de maneira desconectada, mas como um todo integrado. Esse é um conceito que já vem sendo usado há muitos anos e que hoje é consagrado também em grandes instituições, como a Organização Mundial de Saúde (OMS), a FAO [Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação] e as áreas ambientais também, como Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] e ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade].
Sapiência: Professora, como a senhora já pesquisa nesta área há muitos anos, desde antes da pandemia, gostaríamos que nos contasse se você percebeu alguma mudança, algum impacto que a pandemia trouxe?
Lilian Catenacci: A pandemia exemplificou a necessidade de se trabalhar com a Saúde Única. Quando falávamos que nós temos um risco de ficarmos doentes porque não cuidamos do meio ambiente, era difícil as pessoas entenderem. Quando se falava: “mantenham um quintal na sua casa onde os pássaros sejam livres, onde você tenha uma floresta ao redor”, era mais difícil as pessoas conectarem com saúde. Hoje, por causa da pandemia, a gente vê a importância de que cada um tenha o seu espaço. Então, os animais silvestres precisam do espaço deles, a gente precisa cuidar da saúde dos animais domésticos que vivem próximos dos animais silvestres e, claro, da saúde das pessoas. Quando cito pessoas, estou falando de agricultores familiares e de gente que está em zona urbana. Então, dizemos que gerou uma sensibilização. É mais fácil eu conversar hoje sobre a importância dos animais para nos protegerem, e da floresta e de uma água limpa, do que antigamente. Isso eu vejo como diferença.
Sapiência: Fazendo um retrospecto em toda a sua trajetória na pesquisa, e considerando que a senhora é uma pesquisadora interestadual e de importância internacional, o que implica sua passagem por vários biomas, vários tipos de fauna e flora diferentes, com suas peculiaridades. O que mais lhe chamou atenção e lhe inquietou, seja em um aspecto positivo ou negativo, nesses biomas que você estudou?
Lilian Catenacci: Bom, eles são muito diversos. Na verdade, a minha pesquisa tem a ver com o estilo de vida. Então, o meu sonho sempre foi conhecer o nosso espaço, conhecer o Brasil. Além de ir atrás de lugares onde eu pudesse fazer o trabalho que eu acredito, eu também fui atrás de viver em lugares que gostaria de conhecer. E das coisas que mais me impactou é a nossa diversidade de fauna e flora, é impressionante o que temos. E ao mesmo tempo, a similaridade de problemas. Em todos esses biomas a gente vê uma diversidade grande, mas também vemos um uso e ocupação de forma desenfreada e desorganizada. Daí esse uso e ocupação gera desmatamento, expansão agrícola desgovernada, um zoneamento urbano não organizado.
Eu observo muito, e uma outra coisa que me chamou a atenção é como nós que vivemos no Nordeste ainda, infelizmente, sofremos com recursos [financeiros] muito mais escassos do que em outras instituições. Eu acho que tem um lado positivo nisso, se dá pra ter um lado positivo, que é agregar. Não conseguimos fazer pesquisa se o outro não me ajudar. Não dá para realizar uma pesquisa sem a colaboração dos envolvidos. Essa falta de recurso tem trazido para a nossa região uma agregação muito maior da necessidade de colaboração. E aí deixa de ser só porque não tem recurso e passa a ser porque existe uma cumplicidade. Todo mundo acreditando no trabalho do outro para fazermos uma vigilância: é o que vemos aqui no Piauí.
Sapiência: Sobre a temática da covid-19. Não se tem certeza de como o vírus chegou até os seres humanos. Apesar de que as principais suspeitas foram do contato com animais silvestres, como hospedeiros intermediários, ainda é um campo em aberto. Mas relacionado à doença, que é uma zoonose, evidentemente, gostaria que nos falasse sobre o que são as zoonoses e qual a importância da preservação do meio ambiente para nos protegermos delas.
Lilian Catenacci: Zoonoses, o termo de modo bem geral, nada mais é do que a transmissão de patógeno de um animal ou de micro-organismo, como por exemplo o Sars-cov-2, para os seres humanos. Hoje há algumas dessas zoonoses consideradas negligenciadas, porque se manifestam há muito tempo e continuam, como a leptospirose, leishmaniose, a malária. Essa última, inclusive, é um problema que estamos vivenciando no Piauí, que apresentou surto que não havia sido descrito ainda no Nordeste. O Ministério da Saúde está realizando treinamento, porque sabe que vai chegar. Temos que estar preparados para monitorar.
Esses são alguns exemplos que a gente tem de zoonoses. Eu só vou destacar um detalhe sobre o contrário: a transmissão de doenças das pessoas para os animais, que é a zooantroponose. Essa também é uma realidade. A gente teve há pouco tempo atrás um surto de herpes vírus em soim, esses macaquinhos que vocês podem ver em parques, e que muitos animais vieram a óbito. O animal entra em contato com uma banana que alguém que tinha a ferida na boca comeu, que para nós não faz nada, mas que, para um macaco, é fatal. Tem estudos mostrando que a dengue já está aparecendo em macacos de vida livre.
Então, respondendo a sua pergunta, se temos uma mata - e quando falo mata não precisa ser a amazônica, estou falando de caatinga, de mata dos cocais, estou falando da nossa região - e temos uma diversidade grande com diferentes animais ali, imagina o trabalho para um micro-organismo conseguir chegar e causar um problema. Em um processo evolutivo vai ser muito difícil ele conseguir se instalar em um lugar que é tão diversos. Ele tem que vencer uma barreira, que é a espécie, depois tem que vencer outra barreira, dentro da célula daquele bicho, depois tem que conseguir se espalhar, lutando para não ser eliminado. Imagina que eu tenho uma raposa, um macaco, um gavião, um lagarto, então olha o trabalho que dá para ele se instalar.
E quando a gente tira tudo isso, o que que sobra? Poucos animais domésticos, poucas espécies e o ser humano. Então essa mata, esse ambiente natural que faz com que esses microrganismos não consigam atravessar a ponte entre espécies, diminui. O micro-organismo vai estar ali, vai ficar incubado, quieto, que foi o que aconteceu no sars-cov-2. Hoje a gente sabe que não foi morcego, pangolim e humano em um mês.
Os estudos de relógio molecular mostram que antes do primeiro caso realmente ser descoberto, a doença já circulava em outras pessoas há meses. O vírus já estava ali, provavelmente em processo de mutação, iniciando um estágio que ainda não chama atenção até um ponto que conseguiu chegar no momento de replicar e causar todo esse problema que causou.
A diversidade realmente nos protege porque a tendência em um ambiente diverso é não ter esses surtos de doenças. Nós levantamos a bandeira de que a mata nos protege e não é papo de "ecochato" e de ambientalista, é papo de quem trabalha com saúde. São diversos artigos que já mostram isso.
Outra importância dos animais silvestres é que eles servem como alerta, como a febre amarela. Hoje o Ministério da Saúde utiliza como principal alerta para vacinar pessoas se encontramos macacos mortos, bugio morto principalmente. Se tem bugio morrendo, que é super suscetível a esse vírus, significa que tem febre amarela ao redor naquele município.
Sapiência: Professora, voltado para suas pesquisas, uma das mais recentes é sobre a febre do Nilo, uma doença com casos humanos no Brasil apenas no Piauí. Isso chama muita atenção, gostaria que você explicasse um pouco do que se trata essa doença, de onde vem, sintomas e o que podemos fazer para não se tornar um problema maior?
Lilian Catenacci: O vírus da febre do Nilo ocidental já está circulando no país, até onde a gente sabe, desde 2002. Provavelmente ele chegou ao Brasil via aves migratórias do Estados Unidos ou do hemisfério norte, mas ainda não existia casos em humanos. Tínhamos casos em cavalos e temos pouquíssimas informações no Brasil todo sobre aves que entraram em contato com esse vírus. Ainda não conseguimos detectar o vírus em aves no Brasil. Nos mosquitos existe um trabalho desenvolvido na Amazônia em 2021, de mosquitos do gênero culex, que foi encontrado com o vírus.
E o Piauí, como você alertou, é o único estado que tem casos em humanos. O que faz com que a gente seja mais especial, porque significa que nós estamos fazendo o dever de casa de vigilância.
Hoje acreditamos que talvez não tenha casos registrados em outros estados não porque o vírus não esteja circulando, já provamos pelos animais que ele circula, não há vigilância. O que temos no Piauí é essa vigilância em humanos para síndromes neurológicas que funciona e que não é só para a febre do Nilo.
A partir dessa vigilância, nós da área de defesa animal nos unimos para irmos para campo toda vez que temos um caso confirmado de vigilância para poder estudarmos e descobrirmos no Brasil quais são os reservatórios, quais são as aves que eventualmente podem ser hospedeiras - lembrando que ave em si não transmite, quem realmente transmite é o mosquito, então a ave é o hospedeiro e a picadinha de mosquito da mesma família da dengue e zika é que transmite.
Com esse trabalho nós queremos poder elucidar quais são as aves que podem funcionar como hospedeiras, quais são os mosquitos e também tentar chegar antes. Não queremos ir para um município porque há um caso humano que está confirmado. Ao conseguirmos fazer uma vigilância vamos chegar antes de ter um caso, vamos conseguir montar um mapa e falar: "olha tem grande chance do próximo caso do vírus ser nesse município", então vamos fazer uma reunião com esse município e realizar um controle vetorial, ir nas casa das pessoas e falar: "vamos colocar mosquiteiro”.
O controle dessa enfermidade infelizmente é baseado no mesmo modelo da dengue e zika, que é o controle dos vetores, que são os mosquitos. Os sintomas são trágicos, temos vários óbitos no estado, pessoas que ficam acamadas, além dos cavalos que também ficam doentes mas não transmitem, apresentando um sintoma parecido com raiva e vindo a óbito.
Essa é a linha que estamos trabalhando, estamos junto com a Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Piauí (ADAPI), Secretaria de estado da Saúde do Piauí (SESAPI), Fundação Municipal de Saúde (FMS), com os municípios envolvidos onde têm os casos, a universidade, parceria internacional com zoológico de Saint Louis e também a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Piauí (FAPEPI), que está sendo parceira deste trabalho.
Sozinhos nós não conseguimos nada, mas se unirmos os esforços, trabalhamos e conseguimos resultados, é o que estamos mostrando aqui no Piauí. Recentemente tivemos um prêmio que deu um pouco mais de recurso para um outro avanço de trabalho e também foi um reconhecimento desse trabalho que a gente vem fazendo de vigilância da febre do Nilo Ocidental no Piauí.
Sapiência: Sobre a parceria com a FAPEPI, você comentou conosco sobre o Laboratório de Monitoramento de Doenças de Animais Silvestres que conta com o apoio da Fundação. Gostaria que comentasse sobre como trabalha esse laboratório e suas linhas de pesquisa?
Lilian Catenacci: Esse laboratório é um espaço onde trabalhamos dentro do Laboratório de Biologia Molecular e Genética da Universidade Federal do Piauí (UFPI) do campus de Bom Jesus, que foi a cidade que me acolheu por mais de dez anos no Piauí. Quando eu fui movida para Teresina decidimos que de maneira alguma iríamos abandonar o laboratório lá. Todas as amostras suspeitas para o vírus da febre do Nilo vão para o campus de Bom Jesus para serem analisadas.
Temos dissertações de mestrado em andamento envolvendo não só a nossa Universidade Federal do Piauí, como também a Universidade Federal do Pará (UFPA). Temos também um parceiro importante que é o Instituto Evandro Chagas realizando esse trabalho.
Esse laboratório tem base em Bom Jesus e agora que eu estou aqui, estou muito feliz com a parceria. Em breve a gente vai contar também com outro espaço onde seja possível fazer as análises de biologia molecular.
Hoje o que a gente faz é essa análise e identificação dos vetores para a detecção de flavivírus em geral e mais especificamente pelo vírus da febre do Nilo ocidental. Os da febre amarela, quando temos suspeitas, rodamos neste laboratório em Bom Jesus. Mas temos torcido para que muito em breve tenhamos esse segundo lugar para análises.
E porque isso é importante? Porque uma amostra, com esse calor, levando em conta a questão do transporte, como podemos ver as dificuldades em relação a vacina, é difícil. Precisamos de qualidade de amostra para entregar qualidade de diagnóstico, então quando a gente vai para campo levamos 3 botijões de nitrogênio líquido, que é capaz de conservar a -196 ºC. Temos um para equipe de aves, um pra equipe de vetores e um pra equipe de equídeos.
As amostras são transportadas para Bom Jesus nestes botijões e colocados em freezers a -80 ºC. Então vejam a logística: o material que nós sequenciamos, que contei para vocês, é de um equídeo de Parnaíba que foi para Bom Jesus. Então se existe um laboratório em Teresina também - e espero que a gente tenha - temos a possibilidade de um diagnóstico mais rápido que previna as doenças em pessoas e outros animais.
Sapiência: Como pesquisadora, quais as suas expectativas com a sua atual pesquisa de monitoramento de coronavírus, arbovírus e influenza em humanos e animais silvestres?
Lilian Catenacci: Esse projeto surgiu de um financiamento, que veio do chamado Edital Covid, para podermos contribuir com a resolução da pandemia como universidade. A partir desse projeto entramos em contato com a ADAPI e coletamos amostras de morcegos do estado todo, vindos da vigilância que eles fazem relacionada à raiva, para poder ser feita uma investigação não só do sars-cov-2, mas dos coronavírus em geral.
Com o projeto da febre do Nilo nós abarcamos outro problema de saúde animal e humana importante, que é a influenza. Então, quando a equipe está em um projeto da febre do Nilo, na realidade estamos estudando pelo menos 10 enfermidades, utilizando um recurso para 10. É onde hoje precisamos de mais ajuda, para poder processar esse material o mais rápido possível, dar o diagnóstico dessas outras enfermidades que nós também aproveitamos.
Esse projeto, que começou pequeno, se expandiu agora com esse prêmio da UNESCO, para que possamos executar de norte a sul do Piauí, não só coleta de morcegos, mas de primatas e de aves. É isso o que vamos estar fazendo ao longo do ano. Hoje o que temos realizado são coletas de primatas e morcegos na região de Teresina, mas agora iremos expandir para outros municípios estratégicos. Esperamos que com isso seja possível montar um mapa preditivo para pensar onde seriam os locais estratégicos para vigilância, é o que queremos.
Precisamos saber onde devemos estar mais focados, onde os recursos do governo e das universidades podem ser melhor aproveitados, para isso é necessário pesquisas de campo e diagnóstico para saber se está circulando ou não esses vírus que falei. O objetivo é ter um perfil da circulação desses vírus ao longo do estado, podendo assim prever onde as ações de vigilância e controle vetorial devem ser intensificadas.
Sapiência: Nos primeiros casos de febre do Nilo, houve uma especulação da relação da contaminação dessas pessoas com a vida sertaneja que elas levam, levando em conta a prática da caça de animais. Existe essa relação da cultura da caça com a possibilidade de disseminação dessas doenças?
Lilian Catenacci: Eu digo para vocês que caça é um problema para todos os lados: vai ser um problema para aquela população animal, que já está sofrendo pressão e que ainda sofre uma redução de seu número, afetando a diversidade, e outro problema para a saúde das pessoas.
Um exemplo que temos é o da hanseníase no Brasil. O Nordeste é uma das regiões com os maiores índices de hanseníase do país e sabemos que essa doença é considerada uma zoonose pela OMS e que um dos vetores é o tatu. Ou seja, a pessoa que caça o tatu pode ficar infectada, mesmo que olhe para o animal e ele esteja sem nenhum problema aparente, porque já está adaptado e não adoece.
Fizemos um trabalho bem interessante em Bom Jesus, que inclusive foi o trabalho de conclusão de curso de uma aluna, onde rodamos em todas as Unidades Básicas de Saúde mostrando para as pessoas e funcionários que ali estavam essa relação e o problema que é, para que na investigação possam perguntar: "você teve contato com carne desses animais ou soube de alguém da sua família que teve?". Esses encontros foram em formato de roda de conversa. No começo dessa roda vimos que ao chegarmos com as carcaças de tatu as pessoas salivavam e no final as pessoas falavam: "nunca mais entra um tatu na minha casa”.
Eu acredito que esse é o efeito que precisamos trazer, o de mostrar para as pessoas a realidade. É tranquilo você ter o tatu a dois metros de você, ele não vai passar hanseníase assim. É perfeito você ter na sua casa um quintal com passarinhos nas árvores, porque aí o mosquito - trazendo de volta a questão da febre do Nilo - tem preferência por aves. Se não tem a ave, ele não vai morrer de fome, ele vai pegar quem? A galinha, outro exemplo, se não tiver a galinha, então ele vai para as pessoas. Essas aves, macacos, raposas, etc, nos protegem. Porque evolutivamente esses microrganismos não eram pra estar conosco, eram para estar lá na natureza. Vai haver um ou outro animal que morre mas não vai disseminar. Se a gente tira os animais, quem vai sobrar? Só nós. Então, com a nossa grande população humana e com o desaparecimento da fauna é muito mais fácil para esses organismos chegarem e se adaptarem.
Por isso é que desenvolvemos um outro projeto, também financiado pela FAPEPI, chamado "Ecologia de Estradas", unindo saúde com diversidade, assim como o projeto da febre do Nilo. Hoje estamos montando a primeira coleção de museus de avifauna no estado, passando pelos municípios onde tem os casos da febre do Nilo. E isso está aqui depositado no Laboratório de Zoologia da universidade.
Esse projeto da Ecologia de Estrada tem o mesmo propósito, conhecer a fauna do estado, não só animais atropelados, já que temos parceria com o Ibama, com o Centro de Triagem de Teresina, com o Parque Zoobotânico, assim todos os animais que venham a óbito no em tráfico ou que sejam encontrados atropelados vêm para a universidade para fazermos diagnóstico e pensar se oferecem risco para outros animais e para as pessoas da região. Assim, podemos enxergar que não dá para ignorar que a biodiversidade nos protege, isso está mais do que claro com a situação que vivemos hoje.
Sapiência: Gostaríamos que você falasse um pouco sobre sua participação no Centro de Inteligência em Agravos Tropicais Emergentes e Negligenciados (CIATEN).
Lilian Catenacci: Eu já era o Comitê de experts do Centro, mas agora eu coordeno o Núcleo de Doenças Transmissíveis. Estou feliz da vida de está junto, é um sonho poder estar com essa equipe médica, com essa equipe de saúde humana, e a gente atrelar a essas experiências que eu tenho com saúde animal. Então, como a gente estava conversando aqui, não tem como desvincularmos. Na verdade o que a gente vai conseguir trazer é esse arcabouço de pesquisas em animais e juntar com o arcabouço de pesquisas que eles já têm com seres humanos. A ideia disso tudo é que saiam mapas para podermos ir aos municípios onde a gente precisa ter ação de vigilância. O CIATEN tem uma importância muito grande como força para pensar nas políticas públicas. O objetivo da universidade é chegar na política pública e o CIATEN tem esse perfil.
Sapiência: Nos fale um pouco sobre este local onde estamos e outras atuações e frentes de pesquisas com as quais ele se relaciona.
Lilian Catenacci: Nós estamos no Núcleo de Estudos, Produção e Preservação de Animais Silvestres da Universidade Federal do Piauí que é mantido para realizar pesquisas em animais silvestres. Estamos com várias pesquisas, citando como exemplo a do doutorando Elmárcio, orientando da professora Maria José, com resistência antimicrobiana, que é um problema que pode ser o nosso próximo desafio, com todos esses antibióticos que as pessoas tomaram durante a pandemia. Hoje já discutimos que o próximo problema vamos enfrentar será o da resistência a antibióticos. E quem vai servir como alerta também são esses animais que estão na natureza. Estamos acompanhando essa resistência em animais silvestres e em animais domésticos e eu dou um exemplo hoje para vocês que a gente já sabe: tem uma ave migratória, chama maçariquinho, em Parnaíba, ela nunca tomou antibiótico, é uma ave de vida livre, e a gente encontrou coletando amostra dela um gene de resistência a antibióticos de terceira geração. Quer dizer, o animal já teve contato com ambientes onde essas bactérias já existem. Então, esses núcleos de pesquisa, IBAMA, Centro de Triagem, parques estaduais, pesquisa e conservação, são riquíssimos para nos ajudar a pensar quais são as enfermidades que estão ao nosso redor.
Sapiência: Como evitar esse tipo de situação citada pela senhora, como o aparecimento de novas patologias decorrente da degradação ambiental e o maior contato do ser humano com esses animais e ambientes contaminados e ser mais agroecológico?
Lilian Catenacci: Desafiador, mas vamos lá. Adorei a perguntei, eu mesmo na minha casa tenho quatro galinhas, um quintal de onde a gente tira batata doce, feijão. Um quintal, aqui do lado da Universidade. Eu acho que a Agroecologia tá dentro da gente e quando começamos a estudar um pouquinho mais e ter contato com essas pessoas que trabalham com Agroecologia, com os agricultores familiares, descobrimos o quanto a saúde também está conectada a eles.
A monocultura foge de tudo que eu estou falando aqui para vocês. A pecuária em si, onde só temos gado, foge de tudo que eu estou falando a vocês e que os estudos mostram. A gente precisa ter diversidade, e o que a Agroecologia busca é esse equilíbrio. Os quintais Agroecológicos são perfeitos. Os sistemas Agroflorestais são muito estratégicos. Quando eu digo perfeito, nada é perfeito, mas eles são muito melhores para a saúde, eles são muito mais estratégicos do que o sistema que infelizmente temos hoje.
Eu digo que o desafio é a gente valorizar cada vez mais esses quintais, esses métodos agroecológicos, porque é o que traz biodiversidade. O quintal é fundamental, onde tem animais silvestres circulando.
No meu estudo de doutorado a gente trabalhou estudando arboviroses em onze comunidades da Bahia, todas comunidades rurais. Fomos para as comunidades e vimos o quão próximas elas estavam de áreas de mata. E eu coletava o sangue dos animais da mata também. E o que a gente conseguiu provar nos fez pular de alegria. Nos nossos estudos sabe quais comunidades estavam mais protegidas? As comunidades que estavam mais próximas da mata.
Ter o macaco e o morcego ali, era um fator de proteção. Se tinha um macaco para arbovírus naquela região era um fator de proteção. A gente tem que manter a nossa diversidade, temos que pensar em modo de produção, mudar o modo de produção. Hoje, quem nos alimenta é a agricultura familiar. Quem mantém qualidade de comida na mesa.
Eu estou super feliz porque fui chamada para abrir um evento no estado da Bahia para levar a importância da saúde em conjunto com agricultores familiares. No evento estadual me chamaram para a mesa de abertura, eu até relutei um pouco, pois não trabalho com alimentos em si, mas eu sei que essa diversidade nos favorece, e é isso que é preciso colocar.
Acho que os agricultores familiares, as pessoas que trabalham com Agroecologia têm que ter esse discurso na ponta da língua também, porque é essa a maneira de sensibilizar as pessoas.
Eu não estou só comendo bem, eu não estou só vendendo produto de boa qualidade para o outro, mas eu estou pensando na minha saúde, na do meu vizinho, do bairro, do município. Eu estou fazendo com que cada vez menos eu tenha esses surtos aparecendo. Diversidade é saúde!
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