Pesquisa piauiense desenvolve respirador de baixo custo e com características inovadoras
A doença covid-19, causada pelo novo coronavírus, representa um perigo peculiar, pois diferentemente de outras infecções virais, ainda não conta com vacina em larga escala ou tratamento antiviral específico, se espalha mais rápido do que a capacidade de se fazer testes e, além disso, cria a necessidade de hospitalização em um percentual considerável dos infectados. Aproximadamente 15% dos casos se agravam, criando dependência dessas pessoas a aparelhos de oxigênio para sobreviver.
Até então, o que pode ser feito para tratar as pessoas infectadas é manter cuidados de apoio para o alívio dos sintomas. Em casos muito graves chega a ser necessário administrar mecanismos para manter as funções vitais. Ao se levar em conta a crescente necessidade de se hospitalizar pessoas em leitos médicos e de UTI com o alastramento da doença, combinado com a estrutura de saúde limitada do estado, a situação de um possível cenário de colapso da saúde e consequente aumento de óbitos tem assustado não só a população piauiense mas todos os brasileiros de uma maneira sem precedentes.
Nesta difícil situação, diversos países engataram em uma verdadeira corrida para adquirir insumos médicos como equipamentos de proteção individual (EPIs) e ventiladores mecânicos. Esses ventiladores geralmente têm custo alto de produção, são complexos de operar e não existem em número suficiente para a demanda que a pandemia tem causado. A procura pelos equipamentos criada pela covid-19 fez com que o Ministério da Saúde assinasse no dia 7 de abril o primeiro acordo com um fabricante nacional de respiradores hospitalares desde que a pandemia de coronavírus atingiu o país. Até produtoras de automóveis e outras empresas de tecnologia firmaram parcerias, atuando na produção de novos respiradores, no Brasil e no exterior.
Calcula-se que no mercado cada respirador varie entre R$ 50 mil e R$ 150 mil, o que faz com que seja um alto investimento a importação em grande quantidade, no entanto, surgiram pelo Brasil diversas iniciativas de pesquisa e produção de respiradores com custo bastante reduzido, como na USP (Universidade de São Paulo) através de um grupo multidisciplinar coordenado pela diretoria da Escola Politécnica e também na UFRJ, (Universidade Federal do Rio de Janeiro), com os pesquisadores de Engenharia Biomédica do Coppe (Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia). São projetos de baixíssimo custo, entre R$ 1.000 e R$ 2.000, para uso em caso de ausência de equipamento sofisticado.
Pesquisadores dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia Mecânica e Elétrica da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em parceria com o Instituto Federal da Paraíba (IFPB), também desenvolveram um respirador pulmonar de baixo custo, com custo de desenvolvimento entre R$ 700 e R$ 800.
Já no Piauí, chama atenção uma iniciativa de pesquisa que se propõe a desenvolver um respirador mecânico do zero de maneira própria. Desenvolvido pela startup de Robótica TRON, com apoio de pesquisadores da UFDPAR e UFPI, o ventilador é de baixo custo, feito com materiais acessíveis e construído segundo normas da Associação Médica Brasileira (AMB).
“A TRON antes de tudo é uma empresa parnaibana de robótica, que surgiu há três anos, principalmente pela minha interação com a tecnologia. Nos últimos anos tenho trabalhado com robótica aplicada, na parte de interfaces cérebro-máquina e construindo aplicações. Dentro do meu trabalho sempre foquei na questão das crianças. E dentro deste movimento tecnológico, eis que tivemos a ideia de construir uma teoria que pudesse fundamentar o uso da robótica para a construção do conhecimento, fundamos assim o que chamamos de robótica educativa, pelo método chamado TRON, que significa Tecnologia, Robótica e Natureza”, explica o prof. Dr. Gildário Lima, da UFDPAR e sócio-fundador da TRON.
O professor conta que a TRON tem passado os últimos três anos aplicando a robótica no cenário educativo. O método desenvolvido de forma acadêmica pelos fundadores, se baseia em uma metodologia de ensino transversal, correlacionando a inserção tecnológica com outras áreas do conhecimento, gerando assim uma relação que visa maximizar a compreensão do ensino.
“Com esse cenário posto de pandemia, sendo a TRON presente em mais de dez estados, nós começamos a pensar como poderíamos ajudar o nosso país a combater este mal, a primeira ideia foi mostrar a importância das crianças estudarem e aprenderem tecnologia, então a partir do que nós ensinamos em sala de aula, dos componentes e instrumentos presentes no laboratório da TRON, resolvemos mostrar que com esses instrumentos era possível se desenvolver tecnologia, já que hoje em dia a tecnologia tem muito mais a ver com o processo de pesquisa e de como utilizar do que com os materiais em si, baseado nisso partimos para o primeiro projeto que foi a máscara Delfi-Tron” conta o professor.
A Delfi-TRON é uma máscara própria da StartUp adequada para utilização em ambiente hospitalar, com capacidade de ser usada com diferentes filtros e reutilizada após higienização. Obteve liberação pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), de forma temporária, para uso em combate à pandemia, sendo uma alternativa ao uso da tradicional máscara N95. A máscara foi desenvolvida em conformidade com a legislação vigente, além de ter passado por teste de retenção, saturação, respiração, microscopia óptica, retenção de nanopartículas e ensaio de penetração de aerossol, contando também com aprovação de profissionais do Brasil e do exterior.
“A ideia de desenvolver a Delfi-Tron foi olhar pro mercado e ver o que era mais importante e mais fácil. A gente sabia que desenvolver os respiradores seria mais difícil mas totalmente possível, porém as máscaras foram desenvolvidas de forma muito rápida, em 20 dias já tínhamos os protótipos finais, e hoje a máscara está liberada pela ANVISA sendo está presente em mais de 10 países, mostrando o sucesso da nossa solução e celeridade do nosso trabalho. Tivemos parceria com a UFPI, UFDPAR, SESC, FIEPI e outras entidades e pesquisadores que nos ajudaram a construir e documentar tudo”, ressalta o professor.
O professor Gildário explica que a equipe responsável, ao se deparar com o cenário brasileiro, constatou que ainda não existiam projetos de respiradores robustos e que atendessem a todas às necessidades do processo de ventilação mecânica. Preocupados, decidiram pesquisar nos projetos que já existiam algum em que pudessem dar continuidade.
“Após essa pesquisa, concluímos que mesmo os projetos mais avançados ainda eram muito carentes de tecnologia, eram projetos mais voltados à ideação e construção de respiradores emergenciais, assim mais uma vez acionamos nossa equipe da TRON e parceiros e no dia 13 de abril começamos a desenvolver o projeto dos respiradores. Com o avanço do projeto, tivemos a participação de muitos profissionais da área da saúde, muitos fisioterapeutas, médicos intensivistas, pneumologistas, anestesistas, que foram nos norteando e aos quais somos muito gratos. A equipe da TRON começou a estudar isso profundamente, olhando sempre para os nossos componentes e materiais, passamos a criar alguns protótipos, e a cada nova versão tínhamos o cuidado em checar se os componentes utilizados eram abundantes no Brasil e replicáveis. Cerca de 25 dias depois, quando mostramos o primeiro protótipo a comunidade científica, tivemos respaldo e apoio”, conta o professor.
A partir daí começou a interação da equipe com o Governo do Estado. O governo decidiu fazer uma encomenda tecnológica junto a Fundação de Amparo à Pesquisa no Piauí (FAPEPI) com o intuito de investir e incentivar na estabilização da tecnologia. Segundo o pesquisador, o protótipo da TRON já está estável e sendo preparado para replicação em massa.
“Para entender melhor, já existe um protótipo funcionando sem parar desde abril; viemos fazendo testes e melhorando no que fosse possível, e agora tracionamos essa tecnologia para ser replicada. Nossa meta é: doar para o Governo do Estado 300 protótipos estáveis junto com a documentação da ANVISA”, explica o professor.
O Air-Tron já tem respaldo entre diversas entidades e profissionais que manifestaram parecer
favorável ao equipamento como o CREFITO-14 (Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional), médicos intensivistas e coordenadores de UTI, pesquisadores, além de professores do curso de engenharia elétrica da UFPI, que têm aprovado o funcionamento do respirador.
“O que nos passa segurança é cada profissional com larga experiência que nos diz que o equipamento está pronto e que funciona tão bem quanto os outros que já existem. Recentemente fizemos um levantamento de mais de 15 respiradores que já são utilizados, que ao comparar o Air-Tron com estes, mostrou-se que nosso ventilador está bem e vai sim suprir todas as necessidades não só para a covid-19 mas para vários outros tipos de doenças respiratórias”, afirma o professor.
O professor revela que a ideia original do Governo do Estado era de importar equipamentos sofisticados, enxergando essa iniciativa como um plano B, mas que graças ao investimento em pesquisa, os resultados saíram e mostraram a importância de financiar o setor.
“Este respirador é um instrumento capaz de salvar vidas. Nós sabemos que é um equipamento que está faltando no mundo todo. Claro que com isso, precisamos emergencialmente construir tecnologias. A TRON aceitou esse desafio e sabíamos que não seria fácil, sabemos que existem empresas muito maiores com capacidade técnica incrível mas que não reagiram à produção local.
Vendo a nossa sociedade sofrer e sabendo da nossa capacidade, chegamos à conclusão que não poderíamos ficar parados. É uma responsabilidade grande mas contamos com muitas pessoas experientes que se juntaram para ajudar no nosso projeto, estamos confiantes que esse equipamento vai ajudar a salvar muitas vidas, especialmente muitas vidas piauienses”, finaliza o professor.
O respirador Air-Tron passou por testes de robustez e se encontram no processo de estabilização para a produção em massa, com previsão de serem lançados em breve. Segundo a equipe da TRON, o ventilador terá custo de produção de aproximadamente R$ 6 mil, enquanto equipamentos industriais são vendidos a partir de R$ 50 mil. O respirador leva aproximadamente 15 horas para ficar pronto.
Quando a TRON se propôs a usar sua tecnologia no desenvolvimento dos respiradores não imaginava inicialmente que isso lhe obrigaria e construir uma Fábrica de Produtos para Saúde para a entrega dos respiradores. “Iniciamos com a ideia de transferir a tecnologia para uma fábrica já existente, contudo nos deparamos com um cenário carente de Fábricas de alta tecnologia que atendessem as certificações e ao alto padrão de qualidade exigidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA)”, completa o pesquisador.
Com o suporte de assessorias especializadas contratadas para o projeto construiu-se então a primeira fábrica adequada para produção deste equipamento no Nordeste, e desta ação nasceu a Startup OUTLIER que assumiu a responsabilidade de registrar, produzir e entregar os respiradores para sociedade.
“Aceitamos o desafia de aprender sobre plantas farmacêuticas, fluxo de processo sanitário, gestão de qualidade, legislação sanitária, tudo paralelamente ao desenvolvimento do respirador” afirma Gildário.
Segundo a equipe da OUTLIER, o ventilador terá valor final abaixo dos ventiladores de mercado, que custam a partir de 50 mil reais, além de tecnicamente possuir funções e tecnologias únicas no mercado. “Não há um valor de venda para o governo, pois não se trata de uma venda, se trata de um Contrato de Encomenda Tecnológica. O valor simbólico de 6 mil reais por respirador, não é o custo do equipamento em si, mas o valor do investimento médio para estabilização desse primeiro modelo do equipamento voltado para a covid-19”, completa o pesquisador.
Tecnologia
Várias frentes de trabalho foram fundamentais para o desenvolvimento da tecnologia empregada na fabricação do Air Tron. O esforço perpassa as áreas de robótica, design, impressão 3D, desenvolvimento de apps, entre outras, além da assessoria e acompanhamento de diferentes profissionais da Saúde.
A arquitetura do aparelho contém um conjunto de válvulas solenoides para controle dos fluxos de pressão e volume de oxigênio. O projeto inclui ainda o melhoramento de um protótipo de válvula eletro controlada, que possibilitará mais eficácia no desempenho do respirador. Além da mecânica funcional, a tecnologia empregada também é inovadora no acompanhamento do paciente. Vários sistemas têm sido pensados para que médicos e fisioterapeutas possam ter detalhes de todo o processo de ventilação.
“Criamos um sistema de observação da usabilidade; então terá todo o histórico da ventilação lá. Esse acompanhamento já existe em outras áreas na saúde, mas em respiradores ainda não há. Será possível empregar esses dados em pesquisas. Outra aplicação que também vai ser originada é um App do profissional, onde ele poderá aprender tudo sobre respiração e ter um histórico dos casos que ele acompanhar” completa Gildário. ∎
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