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Victória Alvineiro | especial para Sapiência

Buscando o equilíbrio no isolamento


Quando Sigmund Freud (1856-1939) considerou a investigação científica para estudar os fenômenos da mente humana ergueu um ramo moderno da psicologia que considera o comportamento dos indivíduos como o sujeito da psiquê – a psicanálise. No século XIX, Freud, o pai desta ciência, foi um médico psiquiatra que investiu em teorias e experimentos que interpretassem o conteúdo presente no inconsciente dos pacientes a fim de identificar os sintomas adversos e buscar formas de conviver com as questões que eram expostas. O legado freudiano, assim como o de outros pioneiros da psiquiatria, demonstrou as potencialidades do eixo de estudos humanísticos e, sobretudo, saltou a atenção da sociedade para uma estrutura composta pela unidade interior dos seres.


Dois séculos depois, a psicanálise adentra a psicologia como um dos campos terapêuticos mais famosos para o tratamento da saúde mental. O instrumento do bem-estar psicológico é impulsionado, também, por guias alternativos populares que buscam amenizar os problemas do estilo de vida contemporâneo. Ao considerar a demanda, a consolidação do cuidado com a mente torna-se um fato nos dias atuais. No entanto, é possível que Freud, a autoajuda, a prática coaching, a meditação e o feng shui não disponham de tamanho inventário para lidar com o impacto que 2020 trouxe a todos: a pandemia do coronavírus (Covid-19).


Em março deste ano, veio à tona a primeira morte oficial pelo coronavírus no Brasil. Desde então, até junho, 1 milhão de pessoas foram infectadas e mais de 100 mil foram vítimas da doença que se expande continuamente pelo país. Mirando índices significativos para a redução de contágio, o isolamento social foi amplamente divulgado pelas autoridades como prioritário para conter o avanço da doença. Mas, mesmo com a ligeira implementação da medida pública, o número de infectados pela covid-19 cresce progressivo e exponencialmente, causando também uma implosão dos casos de desequilíbrio mental da população brasileira.


Em crise

No Brasil, o número de casos de depressão e ansiedade é maior do que a média mundial e, para especialistas, os fatores causados pela pandemia são fortes catalisadores de uma crise de saúde mental em grande escala. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), os brasileiros registram uma média de 11,5 milhões de casos de depressão e outros 18,6 milhões sofrem de transtornos provocados pela ansiedade, em estatísticas de 2017. Em meio a um cenário cercado por milhares de mortes, forçado ao isolamento social e dominado pela apreensão, problemas como a vulnerabilidade social, a desigualdade social e a falta de acesso aos serviços de saúde mental intensificam a crise no contexto brasileiro.


Para a professora Dra. Algeless Milka Pereira Meireles da Silva, docente atuante no Curso de Psicologia da Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar), a configuração provocada pela pandemia da covid-19 expõe todos os cidadãos a algum nível de fragilidade emocional, mas é necessário considerar as diferentes questões vivenciadas por cada grupo. “Compreendo que a saúde mental, bem como os processos de adoecimento passam, sobretudo, pelo coletivo. Então é fundamental pensar o sofrimento psíquico de maneira situada nos diversos contextos, mediado pelos artefatos socioculturais e as interações sociais que se estabelecem entre as pessoas, incluindo as relações de poder, consumo e acesso aos bens culturais”, reflete a pesquisadora.


A psicóloga alerta para um cuidado maior sob as pessoas que apresentam um histórico de desequilíbrios emocionais preexistente, já que estas sofrem em função das tensões específicas deste período e podem correr riscos diante de um possível agravamento do quadro. Algeless Milka explica, ainda, que as pessoas estão constantemente submetidas a condições biopsicossociais potencialmente geradoras de processos de adoecimento e o sofrimento psíquico configura um esforço para manter a sanidade, mesmo com as adversidades da vida. Ao presenciar uma pandemia, a profissional relata que todos tornam-se suscetíveis com os elementos que caracterizam a própria história de vida, somando-se a aspectos das relações sociais, das condições materiais e emocionais que dispõem para vivenciar o atual contexto.


Ao pensar sobre uma imunização mental coletiva, a professora diz acreditar na integração como precursora desta trajetória. “Neste momento de confinamento generalizado, fomos levados a olhar para a nossa condição de maneira mais integrada. Voltamos a atenção para o contexto e ampliamos um pouco mais a visão historicamente hegemônica de localizar no sujeito a razão de todos os seus problemas, especialmente os relacionados à saúde mental. Desse modo, lutar por uma sanidade mental coletiva passa por compreender que é necessário proporcionar condições de vida digna a todas as pessoas indistintamente, condições que favoreçam o estabelecimento de vínculos seguros e relações saudáveis e de padrões interativos que favoreçam o desenvolvimento pleno do sujeito em sua integralidade”, afirma.


Fluxo on-line

Com o isolamento social, a pandemia instaurou a educação remota como vínculo entre as escolas e os lares dos estudantes brasileiros. A medida é apreendida por vários centros educacionais desde o ensino básico até o ensino superior - este último obteve aprovação recente do Ministério da Educação (MEC) para funcionamento remoto até o fim de 2020. Os problemas enfrentados pela implantação do ensino remoto em meio a pandemia, se acumulam especificamente em áreas vulneráveis e colocam em risco a saúde mental dos envolvidos no processo. Há a dificuldade de conciliar o trabalho remoto com os afazeres domésticos, o impasse no acompanhamento com as atividades escolares on-line, a falta de dispositivos suficientes e de conexão com a internet, o conflito com as tensões emocionais, e a instabilidade econômica provocada pela própria crise.


Como pesquisadora no campo de uso das tecnologias digitais da informação e comunicação nas práticas educativas, a professora Dra. Algeless Milka coordena o Núcleo de Estudos em Psicologia e Inovação Educativa (NEPSIN), e destaca a problemática do ensino educacional remoto como impacto na saúde mental. Para a professora, é possível aprender com a crise e por causa dela, mas desde que as soluções sejam inclusivas e considerem o cuidado mental de alunos, família e professores. “No contexto do ensino remoto, é fundamental redefinir políticas públicas e institucionais de formação e apoio, tendo em vista o uso das tecnologias. Pois não há como ignorar as muitas interferências no processo de ensino-aprendizagem e esperar que os estudantes e educadores continuem com a mesma produtividade que tinham em um contexto sem pandemia”.


A pesquisadora observa que, na atual situação, ganham protagonismo as aprendizagens que ajudam no processo de adaptação e mudança a partir de uma construção coletiva de enfrentamento e novas formas de organização social. “É de um reducionismo sem precedentes considerar que o único entrave do ensino remoto no contexto da pandemia diz respeito à brecha digital ou falta de habilidades de professores e alunos com o manejo das tecnologias. O apoio aos vários atores da comunidade escolar deve partir do olhar contextualizado sobre a realidade dos docentes e das diversas famílias em relação ao acesso a essas ferramentas, bem como à gestão de outras demandas que acabam se sobrepondo à experiência de ensino remoto”, completa.


Teleatendimento

Assim como na educação, o ramo da psicologia perpassa transformações utilizando a tecnologia como principal suporte. O atendimento on-line ou teleatendimento, é uma modalidade intensificada após o advento do isolamento social e que deve integrar, inclusive, a renovação do currículo de profissionais de saúde mental em formação.


De acordo com a professora Dra. Nadja Carolina de Sousa Pinheiro, docente do Curso de Psicologia da Universidade Estadual do Piauí (UESPI), o teleatendimento é uma perspectiva interessante dentro da área da psicologia e é assegurado pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP). “O atendimento on-line é regido por recomendações sérias, incluindo o cadastro profissional. Por conta da pandemia, o órgão permitiu o cadastro e atendimento direto, mas há a premissa de avaliação para posterior autorização. É uma modalidade que exige do profissional muita cautela em relação aos recursos disponíveis para o atendimento e recursos de segurança e privacidade. Acredito que seja uma excelente estratégia para aproximar a relação entre terapeuta e paciente”, explica Nadja.


Desinformação

Com a hibridização da vida on-line e off-line, as redes sociais se firmaram como veículo do consumo informacional da sociedade. Em meio a circulação instantânea de notícias sobre o coronavírus, o fenômeno da desinformação trouxe à tona o poder de alienação a partir da disseminação de notícias falsas. Segundo pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), divulgada em abril deste ano, as mídias sociais são um dos principais meios de desinformação sobre o coronavírus. Ao todo, 73,7% das notícias falsas circularam no WhatsApp, 15,8% no Facebook e 10,5% pelo Instagram.


A desinformação é um risco, principalmente quando usada para corroborar práticas segregacionistas, como aponta a professora Dra. Nadja Carolina, também coordenadora do Grupo de Pesquisa Psicologia e Desenvolvimento Humano (GP/PSIDIHN) da UESPI. Um dos grupos afetados durante a pandemia são os migrantes que enfrentam o preconceito da população residente, sobretudo em cidades pequenas. “Os fluxos migratórios são comuns em períodos de crise. O papel das políticas públicas nesse momento é fundamental para que o processo aconteça de forma menos conflituosa possível uma vez que envolve demandas psicológicas, físicas e sociais. Todos os modelos de enfrentamentos que envolvem cooperação têm obtido mais êxito o que exige que os países se voltem para práticas mais humanitárias. Os modelos segregacionistas têm apresentado muito mais perdas de vida e de recursos”, afirma.


Para a professora, a alternativa viável para a busca de um equilíbrio informacional consiste em utilizar fontes de informações confiáveis, diversificar as fontes para obter mais de uma informação, checar a veracidade das informações e antecipar-se estudando para esclarecer as dúvidas.


Enfrentamento à crise

Enquanto buscam-se alternativas para frear o contágio e o número de vítimas do coronavírus, o futuro do Brasil e do mundo pós-pandemia é incerto. Por enquanto, a única certeza é que as sequelas provocadas pelos efeitos da pandemia podem ser eternas. Considerando o fato, como, então, podemos buscar uma melhora da saúde mental durante a crise? “Reconhecer a incerteza e a vulnerabilidade que estamos vivendo é fundamental”, responde a professora Dra. Fabiana Ribeiro Monteiro, docente do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar).


Segundo a pesquisadora em Psicologia Social, negar os reflexos da crise pode gerar uma piora da saúde mental. “Negar a situação ou fantasiar demasiadamente gera referências dentro de expectativas que não necessariamente se concretizam. Outro aspecto muito importante é observar informações de qualidade e fontes fidedignas para manter e melhorar os cuidados pelo tempo que for necessário, logo, o exercício do presente e da solidariedade é crucial”, pondera Fabiana.

A especialista reitera que as estratégias de aprimoramento para qualificar o cuidado com a saúde mental passam pela estruturação de alternativas já existentes na política pública. “O Sistema Único de Saúde (SUS) têm estendido a acessibilidade e se conseguirmos ampliar os espaços existentes, a quantidade de profissionais e aliar com a melhoria da infraestrutura, podemos afirmar diariamente as ações de cuidado”, finaliza.∎


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