Pesquisadores do IFPI em Oeiras e Corrente montam projetos para desenvolver aplicativos para vender e trocar produtos no campo e na cidade
O catastrófico advento da pandemia da covid-19 na história da humanidade, iniciado em dezembro de 2019, na cidade de Wuhan, localizada na província de Hubei, na República Popular da China, transformou o Brasil no epicentro global da tragédia, segundo várias projeções nacionais e internacionais. Embora, os números oficiais de casos e mortes coloquem o País ainda no segundo lugar do sinistro ranking da crise sanitária, porém, no que se refere à crise socioeconômica associada ao novo coronavírus, talvez seja a nação mais atingida.
Esse retrato será reconhecido em seus detalhes somente daqui a alguns anos ou décadas, até porque o pico da pandemia sequer foi atingido, e boa parte das curvas sanitárias se encontram em crescimento, assim como todas socioeconômicas estão despencando. Elas projetam, entre outros indicadores, depressão econômica iminente. O certo é que, desse ponto de vista, a situação atual impõe desafios inéditos, ainda mais em contexto no qual estimativas projetam queda superior a 10% no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, em 2020.
No pior cenário, mais de 20 milhões de trabalhadores deverão estar desempregados ou sem renda, entre julho e setembro, e com certeza, no Piauí, a dimensão do estrago será proporcional aos indicadores nacionais, senão piores. Seriam mais de oito milhões de desempregados formais, colocados no olho da rua, de forma inesperada, sem renda até para pagar as contas do dia a dia e a alimentação de suas famílias. Com isso, somados aos mais de 12 milhões desempregados, que perduram desde 2015, se chegaria a uma situação desoladora.
No fim do túnel
Mas numa luz no fim do túnel, há iniciativas, movimentos, gestos que conectam ciência, sociedade civil organizada, trabalhadores informais e pequenos produtores precisando encontrar alternativas para sobreviver diante de um quadro tão desafiador. Pesquisadores piauienses de várias instituições de ensino superior estão engajados no desafio de encontrar soluções ao enfrentamento de tal realidade, usando a internet e muita tecnologia, com o objetivo de conectar comerciantes, consumidores e produtores, usando serviços de delivery.
Algumas pesquisas desenvolvidas, por exemplo, no âmbito do Instituto Federal de Educação do Piauí (IFPI) caminham no sentido de apoiar agentes econômicos locais, inicialmente restritos a pequenas comunidades e municípios diminutos, localizados nos rincões do sertão, mas que podem ganhar amplitude daqui para a frente. É o caso da pesquisa sobre o “Aplicativo de delivery para auxiliar comerciantes em meio à pandemia”, desenvolvida no Campus do IFPI, em Corrente – cidade localizada no extremo sul do Piauí.
A cidade é um dos principais centros regionais do sul do estado e fica próxima da divisa com a Bahia, a poucos quilômetros da cidade de Formosa do Rio Preto (BA), onde já se encontra em fase de plena execução. Localizada a 864 quilômetros de Teresina, Corrente é um dos locais onde renasce a esperança para muita gente, que depende, para sobreviver, da produção e comercialização do árduo resultado de seus trabalhos, e encontram restrições importantes para escoar seus produtos, sejam agrícolas, artesanais e industriais, aos consumidores.
Coopera conectando
Outra iniciativa a merecer destaque é o projeto cujo tema é “Aplicativo de rede de contato entre pequenos produtores e consumidores finais” e título “Coopera: conectando pequenos produtores e consumidores”. Esse projeto foi inicialmente idealizado e coordenado pela professora do IFPI, Adália Correia de Oliveira, que mora em Oeiras – localizada a 313 quilômetros da capital, na região Sudeste do Piauí, na microrregião de Picos –, mas foi, por decisão do IFPI, incorporado a outros dois projetos de pesquisas compatíveis.
No caso do trabalho da professora, a ideia tinha como objetivo original do projeto o uso de novas tecnologias, “a fim de gerar uma rede de contato, apoio e comercialização entre pequenos produtores e os consumidores finais, possibilitando a troca ou a venda de mercadorias entre eles”, o ancestral escambo. Isso os conectaria, “gerando renda, incentivando a economia colaborativa e mitigando os impactos econômicos decorrentes da pandemia”.
A pesquisa, ou seja, o lançamento do aplicativo, ainda está no campo do projeto, por falta de financiamento. “A inspiração foi ajudar o pequeno produtor, que estava com certa dificuldade de escoar a sua produção devido à falta de contato direto”, explica Adália. “O pequeno produtor vende muito boca a boca, através das feiras, do contato direto com o cliente. Então, diante do isolamento, eles perderam essa oportunidade, e aí eu observei que as compras on-line se intensificaram.” Ou “através de um delivery”.
Economia colaborativa
A professora observa que os produtores – sobretudo os rurais – perderam inclusive a chance de vender através dos chamados “atravessadores”, como as cooperativas, as lideranças comunitárias, os comerciantes, etc. “Com o crescente do delivery, o aumento das vendas virtuais, por que não unir os dois?” Ela prossegue: “muitos pequenos produtores também, com a falta da venda, por não conseguir vender seus produtos, ficaram com os recursos escassos, recursos financeiros, então, por que não voltar a uma prática antiga”?
A referência no caso vem do início da história do comércio, o escambo, a troca direta, sem o elemento da moeda. “Ele precisaria que só duas pessoas estivessem envolvidas nessa troca”, querendo mutuamente os respectivos produtos. “Eu acredito sim que há uma tendência, uma conexão direta, dos pequenos produtores com os consumidores, e entre eles também, através de um escambo, porque eles já se conectam muito. Os pequenos se conectam através das cooperativas.”
E as cooperativas já operam um papel importante em tal processo. Se operacionalizado, o aplicativo resultante da pesquisa contribuiria a novo conceito que vem crescendo no mundo inteiro, especialmente por ocasião da pandemia, que é o da economia colaborativa. “Esses pequenos produtores precisam se unir para poder se ajudarem, neste momento”, acrescenta. “A economia colaborativa trabalha a colaboração entre as partes, tanto o consumidor final quanto produtores, evitando que seja escoado o produto, que seja colocado no lixo.”
Projeto em operação
Já a pesquisa coordenada pelo professor Felipe Gonçalves dos Santos, auxiliado por seus alunos, desenvolveram um “aplicativo delivery voltado para pequenas e médias empresas, adaptável a qualquer segmento, de modo que o usuário poderá solicitar comida, remédios”, etc. Já é possível, por esse aplicativo, “fazer a compra do mês no supermercado ou nos estabelecimentos da sua região, de maneira a minimizar os efeitos do isolamento em razão da pandemia da covid-19”.
O pesquisador sustenta, no projeto original, que “o aplicativo poderá ser utilizado de forma prática e portátil”. Ele acrescenta: “a plataforma contará com notificações de pedido, banner publicitário, alerta de promoções da sua localidade, entre outras funcionalidades”. O funcionamento dessa ferramenta já é uma realidade. Segundo Felipe, “sim, o projeto já está em funcionamento na cidade de Formosa do Rio Preto, cidade piloto, escolhida em decorrência do diagnóstico feito pela equipe”.
O professor se refere às dificuldades enfrentadas com a pandemia, onde reside o aluno do IFPI, Cristian Paulo Nunes da Silva, que atua no projeto. Mas o pesquisador anuncia que as próximas etapas serão a implementação na região de Corrente e entorno. A criação e funcionamento do serviço, conforme o projeto original, cumpriu metas, como realizar uma análise dos requisitos para o sistema de delivery; e desenvolver a aplicação do delivery junto a alguns comerciantes.
Adaptável aos comerciantes
Procurou-se, “de maneira máxima, torná-lo adaptável para os diversos segmentos comerciais”. A pesquisa envolveu ainda a realização de “testes de softwares eficazes e atuais”, “objetivando fornecer informações de qualidade em que a aplicação deverá atuar”. “A assessoria jurídica e contábil para decisões relacionadas à legislação nacional e regional” também foi levada em consideração na pesquisa, que comprou domínio na Play Store e App Store, serviços de distribuição digital de aplicativos, jogos, filmes, programas, músicas e livros, etc.
Foi comprado um domínio – endereço do respectivo site na internet, que funciona como uma porta de acesso das pessoas ao aplicativo –, providenciado a hospedagem da aplicação de delivery em servidor web “robusto e eficiente”; e se criou um plano de negócio junto às secretarias de comércio dos municípios. Além disso, o projeto prevê a criação videos de publicação, tutoriais ilustrativos em vídeos e banners de divulgação, treinamento dos pequenos e médios comerciantes da localidade e divulgação da aplicação nas diferentes mídias.
“A facilidade de acesso a celulares e tablets fez com que os números de acesso via dispositivos mobile crescessem vertiginosamente nos últimos anos”, explica o professor. “Segundo dados da ComScore, cerca de nove milhões de internautas no Brasil acessaram a Internet exclusivamente de seus tablets e celulares em 2015 – e metade dos usuários consumiam conteúdos digitais em mais de um dispositivo.” Para o pesquisador, “esses números confirmam uma tendência já consolidada: as empresas precisam estar adaptadas”.
Perspectiva imensa
Segundo Felipe, essa forma de relacionamento digital deve constituir sua principal ferramenta de comunicação com os consumidores. “Com a situação causada pela covid-19, essa conexão direta tem que ser adiantada para a maioria das empresas, e pequenos e médios comerciantes e consumidores tiveram que se adaptar rapidamente. Não é algo simples.” e “O ciclo de vida de um software é uma estrutura que indica processos que são tarefas difíceis desde o planejamento do projeto, passando pela execução e encerramento”, informa.
Ele destaca que “a parte de planejamento foi simples, pois tínhamos como base outras aplicações que são destaques nacionais de delivery”. “Assim tínhamos uma noção do funcionamento, porém a parte do desenvolvimento da aplicação (execução) foi a que nos apresentou mais dificuldades.”. A pesquisa acadêmica alimenta, com o desenvolvimento do conhecimento relativo ao projeto, muitas perspectivas no sentido de que o software genuinamente da região possa impulsionar, de fato, a economia local.
A perspectiva é imensa. “Aguardamos que as associações de comerciantes e restaurantes da região do Extremo Sul Piauiense se engagem junto com o projeto”, continuou o professor. “Apesar de sabermos que a visão e o letramento digital ainda é muito baixo na região, estamos abertos a conversar com as prefeituras e associações e realizar o treinamento, um a um, para que possam utilizar o Oeste Delivery como ferramenta.” A meta é auxiliar e alavancar suas vendas.
Acompanhamento e capacitação
No trabalho desenvolvido pela professora Adália, no Campus do IFPI de Oeiras, “junto ao projeto do aplicativo existe também a ideia do acompanhamento e da capacitação desse pequeno produtor, que está previsto no projeto, na etapa de sensibilização”. “Então, durante esse processo de sensibilização, do uso da ferramenta, de técnicas de atendimento, de técnicas de precificação, estoque, tudo isso, vai nos trazer uma informação do público que a gente tem, na figura do pequeno produtor”, completa.
São informações concernentes ao que ele produz, quanto ele vendia antes da pandemia, quanto vende durante a pandemia. “A gente teria uma noção do faturamento deles. Isso faria com que a gente tenha uma estimativa também do faturamento do aplicativo, porque, depois do final da execução desse projeto, o aplicativo teria que caminhar com suas próprias pernas, e faria isso como?” A pesquisadora responde: ele cobraria um percentual, justo, sem dúvida, em cima do pequeno produtor”.
Adália explica com mais detalhes a viabilização financeira do mecanismo, acrescentando que a taxa cobrada seria proporcional ao que o pequeno produtor comercializasse, e cobrado um valor fixo sobre o que ele trocasse como escambo. “Diante disso, a gente teria uma noção, mais ou menos, de quanto seria o faturamento” dos agentes econômicos envolvidos no projeto. Pesquisas como essa, sendo multiplicadas, impactariam não só do ponto de vista financeiro da produção e comércio locais, mas do tecnológico.
Novo projeto
O projeto da professora do Campus do IFPI de Oeiras houve, no entanto, algumas modificações. A Pró-Reitoria de Pesquisa anexou o projeto de Adália a outros dois projetos. “Juntou o meu projeto com o de outra pessoa e com um outro projeto maior, que é o financiador. Então, são três projetos. E aí a gente idealizou um novo projeto, um novo formato. O aplicativo e o software não são como eu idealizei.” Essa parte ficou a cargo de outro professor de informática do Campus do IFPI de Corrente.
O novo projeto é voltado exclusivamente aos pequenos produtores rurais, cabendo à pesquisadora a parte administrativa da iniciativa, cuidando do papel de sensibilização e capacitação do pequeno produtor. O importante é encontrar saídas para a noite longa e o incerto e assustador amanhecer, após o raiar dos primeiros raios de superação humana frente a uma de suas maiores tragédias históricas, a pandemia da covid-19. Para Adália, a pandemia está sendo uma ferramenta transformadora nas pessoas e no mercado.
Mas ela destaca que a iniciativa dos pesquisadores dos campi de Oeiras e Corrente do IFPI se insere totalmente nesse contexto aterrador. “Principalmente voltado para a gestão social, que é a ideia do olhar para o outro, que é a ideia da empatia, solidariedade, do pensar coletivo e a partir disso surge a economia colaborativa, a economia compartilhada, os arranjos produtivos locais, que são áreas que envolvem essa gestão social.” A reflexão inevitável segue o sentido de que mudará a organização socioeconômica durante a pandemia e no pós. ∎
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