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Foto do escritorSérgio Fontenele

Literatura que reafirma nação afro-brasileira

Pesquisadora literária piauiense defende tese com base na obra de três autoras negras – uma brasileira e duas africanas – para reafirmar presença feminina na literatura

Professora analisa obra de três autoras negras que reafirmam nação afro-brasileira. (Foto: Sérgio Fontenele)

Pesquisa literária no Piauí é algo raro, especialmente quando se trata de uma literatura tradicionalmente excluída do cânone literário brasileiro, reconhecedor de poucos autores negros, como Machado de Assis, talvez o maior nome da literatura latino-americana. Quando o objeto da pesquisa relaciona não apenas a produção literária de escritores negros brasileiros, mas é focalizada na produção literária de mulheres negras, autoras hoje reconhecidas como de grande envergadura estética e poética, ganha uma relevância inegável.


A pesquisadora piauiense Assunção de Maria Sousa e Silva, da Universidade Estadual do Piauí (UESPI), foi além, e estudou a produção literária feminina no continente africano, através de duas escritoras de língua portuguesa e a respectiva correlação e identificação com o universo feminino literário negro investigado no Brasil. Financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Piauí (Fapepi), a pesquisa intitulada “Nação e identidade na literatura africana e afro-brasileira de escrita feminina” é reveladora e muito importante não apenas do ponto de vista literário.


O trabalho, portanto, é baseado numa análise da obra de três autoras: a brasileira Conceição Evaristo, a angolana Paula Tavares e Conceição Lima, de São Tomé e Príncipe, outro país africano de língua portuguesa. Do ponto de vista da contribuição feminina brasileira, através da poetisa Conceição Evaristo, trata-se, segundo a pesquisadora, de “uma reflexão sobre autoras negras que escreveram no Brasil e praticamente ninguém falava”. Essa situação, de acordo com a pesquisadora ainda “é uma realidade das produções de autores e autoras negras”.


Angola e São Tomé e Príncipe Quanto à investigação da obra de Paula Tavares, de Angola, e da são-tomense Conceição Lima, a ideia de relacioná-las com a obra da escritora brasileira veio “como ações entrecruzadas, tecitura de resistência na poesia”. “O que eu comecei a ver? Lendo as obras dessas autoras, captando que temáticas elas abordam, comecei a perceber que elas – cada uma, dentro do seu país – apresentam uma nação, esboçam, colocam em evidência as suas ideias sobre a nação.”

Assunção explica o conceito implicado na palavra nação. “São as nações literárias. Então, por isso que no final do livro tem nação literária dentro da compreensão da obra da Conceição Evaristo, nação literária da angolana Paula Tavares e da são-tomense Conceição Lima.” A pesquisadora informa que teve que pensar e verificar, literariamente, qual é o processo de escrita dessas autoras, mas como projeto de nação – no caso, Brasil, Angola e São Tomé.

Ela chama a atenção para o relevo dessas autoras, “dentro de uma concepção de uma literatura canonizada”. “Elas vêm rasurando esse projeto de nação, que sempre é conformada, que sempre é moldada, que sempre é revelada através do ponto de vista masculino”, acrescentou. “Pra mim, foi de grande felicidade perceber como é que as mulheres escrevem, o que elas escrevem, o que há de semelhante entre as abordagens de escrita literária de uma mulher brasileira com a mulher angolana e uma mulher são-tomense.”

Literaturas negras Mas, de onde veio a ideia de relacionar, no mesmo contexto literário, as obras dessas autoras? Assunção explica que conheceu Angola, em 1997, e verificou que era muito próxima a ambientação, o clima, o aspecto geográfico e “algumas coisas de nossas realidades”. “Estavam muito próximas, dialogavam. Isso foi uma descoberta pra mim muito interessante. Ali eu descobri que, a partir daquele momento, eu deveria estudar as literaturas das populações negras e de mulheres.”

Segundo Assunção, primeiro surgiu a ideia de mulher. “Porque na verdade a mulher sempre foi pensada nos estudos, ela sempre foi objeto de estudo, mas ela não era o sujeito desses estudos.” A pesquisadora queria ampliar essa dimensão. “Como é que a mulher, ao fazer a sua escrita – porque a minha área é de literatura –, pensa sobre si mesma, mas não sobre si mesma no sentido só de falar de ser mulher, mas pensa a coletividade.”

Ela estende o raciocínio que norteou o início de sua linha de investigação sobre as três autoras. “Pensando ser mulher e colocando personagens femininas, como é que ela, ali, está falando da sua coletividade negra, feminina?” Como não havia um estudo mais sistematizado sobre as literaturas diferentes, que não estavam contidas no cânone literário brasileiro, Assunção, a partir dali, decidiu, do seu ponto de vista, que, se fosse fazer algo que realmente viesse a contribuir, seria discutir como a imagem feminina negra está ali posta. Leituras e releituras Em Belo Horizonte (MG), onde a pesquisadora morou, como bolsista da Fapepi, os respectivos estudos foram aprofundados. “Lá eu aproveitei o meu estudo, a minha pesquisa, para conhecer mais as outras duas autoras que eu queria fazer a comparação de olhares, maneiras de ver o mundo e a nação”, relata Assunção, a respeito de Ana Paula Tavares, que é professora na Universidade de Lisboa, e Conceição Lima. Na capital de Portugal, onde a pesquisadora fez doutorado, surgiram leituras e releituras mais consistentes.

“Eu tive um tempo de reflexão muito produtivo. A minha linha de investigação era perceber como as literaturas de autoria feminina apresentavam suas visões de mundo.” Depois, a pesquisadora descobriu que a literatura tem um destaque social. “Ela é um patrimônio cultural e é também uma forma de conhecer as realidades de determinado povo”, avalia. E essa análise a conduziu a um ponto importante, no qual descobre que as literaturas são dominadas por homens, de determinadas classes privilegiadas, com visão patriarcal.

A piauiense descreve: “o que eu vi é, como as literaturas sempre vem apresentar uma realidade, dentro de uma determinada época, num determinado lugar, quais são os sujeitos que sempre falam, quais são os autores que sempre estão em destaque”? A descoberta do pressuposto de dominação masculina e elitista da historiografia literária “oficial” a levou a buscar quase o oposto. “Como as mulheres pensam a nação, ou seja, através da literatura, como essas mulheres abordam, apresentam a ideia de nação?” Nação literária A conclusão seguinte consiste no conceito de que as três escritoras, “ao criarem o seu projeto de escrita, estavam também projetando uma nação literária”. “Estou pensando, consequentemente, numa literatura do sul”, em referência às realidades das autoras, em países do Hemisfério Sul, considerados como subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, onde as mulheres negras têm cumprido um papel significativo. Ao longo de gerações, esse papel de resistência contra a opressão do sistema dominante tem sido cumprido.

Tem a ver com o olhar feminino. “Como é que essa configuração das literaturas do sul, dos continentes, se revelam, do ponto de vista de ser mulher, do ponto de vista de tratar da tradição do papel nessas nações, antes desses países se tornarem nação, de como aí se desenvolvem, sob o ponto de vista feminino?” Assunção trata, nesse recorte teórico, da relação entre as mulheres e a comunidade retratada em sua pesquisa. E, a partir desse ponto, entender como as mulheres se dizem como sujeito de intervenção social, de resistência.

O que a tese quer mostrar, segundo a pesquisadora, “é que a mulher, num determinado lugar social, que se ergue, traz essa resistência, também está, de certa forma, combatendo essa visão viciante de inferiorização sobre o povo feminino, sobre a atuação feminina, sobre o papel feminino na sociedade”. “E isso está saindo, surgindo não de uma visão masculinizada, mas dela mesma enquanto sujeita que, artisticamente, está participando da sociedade.”

Resistência feminina Além do papel de resistência social e identidade feminina, encontrado na literatura das escritoras pesquisadas, o que se sobressai é a qualidade estética, poética, literária dessas obras. “À medida que eu focalizo, por exemplo, a poesia da Conceição – eu me detive só no gênero da poesia –, eu quero focalizar com esse feito poético.” Prossegue a piauiense: “eu não deixo de mão, não deixo de lado – que é o meu principal foco –, de perceber como se re-desenvolve uma fortuna crítica da Conceição Evaristo”, sobre a brasileira.

Sobre a autora brasileira, Assunção verifica como a sua poesia é identificada pelo público, “além de como ela, como autora, trazer questões que são altamente significativas para se pensar as relações sociais e a participação da mulher negra na sociedade”. “Do mesmo modo, eu procuro desenvolver com a obra da Paula Tavares e da Conceição”, diz a pesquisadora. “É uma pesquisa literária, uma pesquisa em que eu não vou focalizar a questão social propriamente dita ou uma visão antropológica, mas eu alinhavo essas áreas.”

O método usado por Assunção, em sua tese, foi determinante para suas conclusões. “Para eu fazer uma análise literária, eu vou buscar recursos extra-literários de compreensão da realidade”, desenvolve a pesquisadora. “Eu focalizo tanto no aspecto da sociologia – conceitos e categorias –, da antropologia, da questão do feminismo, e já aí começando a fazer a distinção do que é o feminismo compreendido, elaborado e atuado pelas mulheres, de uma maneira generalizante, do pelas mulheres negras, que é o feminismo negro.”

Comparação das obras A comparação das obras das três autoras era necessária. “Como a tese, metodologicamente, vem de um viés comparativo, eu comparei os vários aspectos, trabalhando a questão de como os aspectos literários estão nessas obras das três”, acrescenta. “E de que forma, a partir de uma leitura extra das ciências, que não são propriamente literária, eu poderia pensar na escrita de mulheres de países diferentes, mas que trazem em seu seio, no seu cerne, a questão da condição feminina.”

É grande a relevância, portanto, do fazer história feminino, na pesquisa de Assunção. “Como essas mulheres estão transitando nas obras como personagens e sujeitas que intervêm socialmente, representação dessas sujeitas que interferem socialmente e também vão fazendo história?” Então, a pesquisadora continua: “como é que cada uma de nós fazemos história”? Nós não fazemos sozinha. Claro que fazemos continuamente com a sociedade.”

Segue a pesquisadora: “o que acontece é que muitas vezes há rasuras na nossa participação, porque a sociedade vê de uma maneira subalternizada, inferiorizada a participação da mulher”.


Especificamente quanto à presença da mulher negra, na história brasileira, a pesquisadora atribui um papel de centralidade na literatura. “Quanto à presença da mulher negra na história brasileira, nós sempre tivemos mulheres negras fortes. As pesquisas dentro da sociologia, da antropologia, estão constatando isso.”

Conceição Evaristo foi uma das escritoras estudadas pela pesquisadora. (Foto: Walter Craveiro/Flip)

Não reconhecidos Se nós pensarmos a historiografia literária brasileira, até, vamos dizer, meados do século XX, nós temos uma ideia de escassez de nomes, tanto de autores negros quanto de autoras negras, porque eles sempre existiram, mas não eram reconhecidos pela crítica.” Nesse ponto, Assunção faz um resgate histórico do isolamento imposto aos autores negros. “Desde a gênese da literatura, o que nós sempre estudávamos? Que havia autores negros – Machado de Assis e Cruz e Sousa. Isso nós tínhamos nos livros didáticos que nós estudamos.”

A crítica ao domínio das elites sobre o padrão atribuído à literatura brasileira, sem dúvida, também surpreende na tese de Assunção, talvez no contexto do grande público. “Nós temos aí um estudo, de consistência, bastante consolidado, da crítica literária brasileira, que é homogeneizante, que tem uma visão hegemônica de quem era que deveria ser reconhecido como autor, e dizia assim: de qualidade.” Ela contesta esse olhar, e cita Conceição Evaristo como exemplo da abundância de autoras negras e autores negros no patamar máximo.

A partir da poetisa, Assunção desenvolve uma tese essencial para a compreensão da cultura brasileira. “A presença da Conceição surgiu daí. Qual a importância, hoje, para nós, de termos uma Conceição Evaristo? É que ela vai mostrando, à medida que vai conquistando espaço, que não tem só ela ou alguns outros, que nós temos um universo bem amplo de autores, que há muito tempo vêm escrevendo.” Para a pesquisadora, isso é importante porque quebra com uma visão estreita de que temos um pensamento hegemônico, elitista. Respeito a todos O respeito e o reconhecimento, nesse sentido, é pregado em relação à importância da contribuição de autoras e autores negros para a literatura brasileira. “Os autores negros e autoras negras, os autores da periferia, os autores gays, lésbicas, todos têm que ter uma participação e devem ser valorizados”, enfatiza a pesquisadora. E mais uma vez se refere a Conceição Evaristo como um grande nome da literatura brasileira, considerando o presente e o passado.

Segundo a pesquisadora, a autora tem um papel de destaque. “À medida que sua poesia tem uma inserção, que é identificada por aquelas pessoas que sempre gostavam de poesia, mas que não havia uma voz diferenciada que mostrasse o Brasil ou a identidade brasileira sob uma outra perspectiva.” Para Assunção, “isso é interessantíssimo”. “Isso é inovador, isso tem a ver com a auto-estima de quem está lendo, isso tem a ver com a formação de um público que goste e que se auto-identifique com a literatura afro-brasileira.”

A pesquisadora afirma: “é dar uma amplitude da literatura, revigora, pluraliza, inclui, ou seja, de certo modo também traz a uma perspectiva de realinhamento epistemológico”. “Não houve uma lacuna, não houve um silenciamento? Houve o que alguns pesquisadores dizem que é um epistemicídio”, finaliza, denunciando que algumas formas de entender o mundo foram praticamente solapadas, para que revigorasse a mentalidade eurocêntrica ou ocidentalizante. Com a tese de Assunção, essa história começa a mudar.∎

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