Pesquisa de recorte histórico mostra o cenário do espaço feminino no comércio da cidade de Parnaíba, no litoral do Piauí, entre os anos de 1930 e 1950
A luta das mulheres para ocupar espaços públicos não é de hoje. A inserção delas no mercado sempre foi uma luta, e mesmo nas capitais e grandes cidades do Brasil sempre houve disparidade nas vagas ocupadas por homens e mulheres. Refletindo isso e com um questionamento sobre como as mulheres estavam inseridas no mercado de trabalho da cidade de Parnaíba, no litoral do Piauí, durante o século XX, a professora Mary Angélica Costa Tourinho, doutora em História Social pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), buscou através da sua pesquisa de doutorado, retratar e analisar as vidas de mulheres trabalhadoras no comércio da cidade.
“Não sou de Parnaíba, sou de São Luís. Quando cheguei aqui, me deparei com a imagem de uma cidade extremamente comercial, empório comercial do Piauí até, aproximadamente, a década de 60. E fazendo uma visita ao Centro Caixeiral, me deparei com retratos de muitas mulheres que terminavam o Curso de Guarda-Livros, a princípio, que só depois se tornou o curso de contabilidade. A partir disso, veio a seguinte pergunta: onde estariam essas mulheres que se formavam? Elas tinham espaço no mercado de trabalho aqui na cidade, no período em que a cidade era considerada como um grande empório comercial do estado do Piauí?”, questiona Mary.
A pesquisadora conta que foi um processo árduo até conseguir alguma informação concreta sobre o papel dessas mulheres na sociedade parnaibana entre os anos de 1930 e 1950, foco da sua pesquisa, que foi amparada pela Fapepi. Ela narra que se deparou com um Periódico intitulado Bembém, que falava das mulheres da Parnaíba de outrora. Esse jornal, cujo um dos editores é Benjamim Santos, intelectual da cidade, tentava falar um pouco dessas mulheres, mas tinha um caráter de enfrentamento, apontando um olhar crítico sobre, o que a pesquisadora destaca, “a cidade das gravatinhas e suspensórios”, apresentando, desse modo, a imagem de uma cidade identificada com homens e não com mulheres.
“Em meio a isso, novamente saí em busca dessas mulheres. Se elas existiam, se elas saiam de casa, se elas trabalhavam, onde elas estavam nesse mundo do comércio em Parnaíba. Fui estimulada também por esse olhar do intelectual Benjamin que embora falasse das mulheres, dizia que o lugar do comércio era de homens. A partir daí fui em busca delas, esquadrinhando tudo o que era possível”, afirma a professora. A pesquisadora aponta que em um primeiro momento encontrou muitas mulheres na fala de memorialistas, mas que faziam parte das classes mais altas da cidade ou que eram mulheres ligadas a um nome de um homem, comerciante importante, sendo esposa ou filha. Porém, ela buscou investigar as mulheres invisibilizadas. Um dos meios que utilizou para encontrar informações iniciais para a pesquisa foi através do Almanaque da Parnaíba.
“O Almanaque foi um local onde eu comecei a vislumbrar as chaves para o questionamento. A princípio eu procurei nos textos que eram produzidos por homens, pois quando se encontra mulheres no Almanaque, elas estão falando de poesia. A única mulher que atuava de forma diferente enquanto produtora de texto do almanaque era Alda Cunha, a primeira mulher de Parnaíba que se formou no curso de Direito, em Teresina. Ela tinha um discurso feminista para o período, bastante interessante. No mais, citava-se muito rapidamente as mulheres que atravessam o rio para vender frutas, da filha de alguém que trabalhava em um banco...”, destaca.
Depois das pesquisas em Parnaíba, também buscou informações no Arquivo do Estado em Teresina, encontrando informações no Diário Oficial e outros jornais, que apresentavam listas de comerciantes da cidade de Parnaíba, e dentre eles o nome de mulheres. A pesquisadora afirma que inicialmente decidiu catalogar os nomes das mulheres que encontrava. Após isso, foi cruzando as informações que apareciam nos jornais, no Almanaque, em livros publicados na época, em listas sobre pagamentos de impostos e em falas espalhadas que eram captadas em qualquer tipo de publicação do período. E assim foi encontrando as informações necessárias sobre essas mulheres.
“O olhar do pesquisador tem que ser bastante detalhado. Na última página, parte das pessoas que financiavam o Almanaque de Parnaíba, era fruto de patrocínio de comerciantes da cidade, e lá encontrei o nome de muitas mulheres que eram comerciantes. A partir disso cruzei as informações. Eu não tenho precisão de quantas eram, pois fui dividindo-as: quem era funcionária pública, quem trabalhava na feira, quem trabalhava no comércio formal e informal. Foi bem interessante, porque eu fui encontrando mulheres que trabalhavam com comércio de bebidas, retalho, bilhar; mulheres que trabalhavam no funcionalismo público, embora o meu objetivo fosse essas mulheres que atuavam, que vou denominar de mercância, elas faziam o comércio.
Elas vendiam seus produtos e ganhavam com a venda dos mesmos. Poderia ser com hotéis, encontrei muitas mulheres que trabalhavam no serviço de pensões, hotéis da cidade, às vezes colocavam o nome do marido à frente, mas na prestação da prefeitura era o nome delas que apareciam. Nas falas que fui cruzando do almanaque, elas eram citadas pelos clientes. Então, fui percebendo o quão diverso era esse universo de ação das mulheres no mundo do comércio em Parnaíba, entre 1930 e 1950”, ressalta a professora.
A pesquisadora conta que nos bairros mais populares, as mulheres tinham uma atuação maior no comércio de bebidas e no comércio de retalhos. Já as mulheres que tinham uma formação no Centro Caixeiral, empregavam-se como datilógrafas, auxiliares de escritório, contabilistas, ou então funcionárias de bancos; porém ainda havia forte influência da sociedade patriarcal, uma vez que a posição que ocupavam dependia de quem eram seus pais, se eram donos de comércios ou se atuavam em setores mais expressivos da sociedade.
“Fui encontrando uma diversidade muito grande, e uma variedade de atividades de mulheres nesse universo de trabalho. Elas faziam da extensão das suas casas uma atividade comercial. Encontrei muitas mulheres que trabalhavam com pensões, e cruzando os dados, principalmente com narrativas de memorialistas, observei que algumas dessas pensões eram prostíbulos, embora, oficialmente, aparecessem como pensionatos e restaurantes. Essa era uma estratégia que muitas delas utilizavam para que suas atividades fossem legalizadas”, afirma Mary.
A pesquisadora mapeou cerca de 100 mulheres, entre os anos 30 e 50, que desenvolviam diferentes atividades ligadas ao comércio. As mulheres que trabalhavam com o comércio, mesmo em casas, tinham uma relação com o espaço. Elas se deslocavam pela cidade para manter a atividade comercial, que embora doméstica, também tinha uma extensão no espaço público. Ela também relata que encontrou mulheres, inclusive, como guarda-livros, ápice da carreira comercial no espaço formal para quem não fazia parte dos grupos de poder.
“Por muito tempo, quando se construiu a imagem da história, dos lugares, dos tempos, essa imagem era muito masculina. Então essa visibilidade, por meio de pesquisa, de trabalho, do olhar que é construído por meio de estudos e pesquisas, integrar as mulheres, fazer com que as mulheres sejam parte de uma narrativa histórica é muito importante para mim”, declara.
Ela destaca que no desenrolar da pesquisa, inclusive, encontrou mulheres daquele tempo ainda vivas e que se orgulhavam do papel atuante que realizaram em meio a tantos preconceitos e invisibilidade por parte da sociedade. “À medida que fui aprofundando esse olhar, identifiquei mulheres ainda vivas. Entrevistei uma senhora que foi garçonete no bar Pimpão, um bar muito importante no centro da cidade, e que se orgulhava muito de ter sido trabalhadora desse lugar. Elas se orgulhavam muito daquilo que tinham feito, do espaço que tinham ocupado. Foi muito interessante me deparar com esse universo de mulheres que construíram a sua sobrevivência por meio do trabalho e davam a devida importância para isso”, conta, enfatizando ainda sobre outras mulheres.
“Fiz perguntas para dona Odelita, que também foi garçonete, ela disse: “eu fui garçonete do bar mais importante da cidade.” O trabalho conferia a elas dignidade e isso construiu a imagem delas enquanto seres humanos. Elas se sentiam parte de algo, não por ser filha ou mulher de alguém, mas pelo trabalho que exerciam. Embora eu não tenha conseguido entrevistar todas, consegui fazer com que as pessoas percebessem que existia um universo de mulheres que estava todos os dias abrindo as portas da escola, as portas do comércio, da pensão, da quitanda, do bar. Muitas eram donas de escolas de datilografia, de corte e costura, etc”, declara.
Sobre a existência de estruturas de organização sindical que amparassem estas mulheres, a pesquisadora afirma que não havia sindicatos específicos de mulheres, mas um movimento de caráter mutualista de comerciantes e comerciários da cidade, a União Caixeiral de Parnaíba, fundada em 1918. Segundo a pesquisadora, em meados da década de 40 a questão trabalhista foi emblemática, período em que Vargas era presidente e época em que ocorreu aparelhamento dos sindicatos e a filiação de mulheres à União Caixeiral. Uma das lutas conquistadas pelo sindicato foi a liberação da tarde de sábado, que ocorreu a partir de movimentos sociais à nível nacional e que foram encampadas por Parnaíba.
“Eu costumo dizer que as lutas empreendidas pelas mulheres em prol de respeito, de direitos, sempre tiveram muitas frentes; considerando que no contexto que estamos analisando, existia um vasto processo de lutas de mulheres que se situava principalmente em um aspecto, o voto”, afirma.
A pesquisa revela que cabem pontos importantes a se considerar neste processo de luta, como até os menores avanços na participação feminina carregavam forte presença de discurso conservador. Apesar de toda essa mobilização não era fácil nem tranquilo esse acesso das mulheres em determinados espaços, pois muitas vezes nesse contexto de transformações, os homens não conseguiam se relacionar com mulheres nos setores.
“O próprio Getúlio Vargas tinha como ministro um homem importante que ajudou a pensar políticas escolares para as mulheres, Gustavo Capanema, e ele, em uma conferência proferida durante o Estado Novo, chama a atenção no que seria adequado para as mulheres e o que seria a mulher em si. O ministro dizia claramente que a mulher, apesar de se mostrar capaz para realizar tarefas mais penosas e difíceis, também precisava de educação formal e seria necessário prover uma educação mais adequada à sua condição. A mulher conservava a família, e construía o estado por suas mãos - discurso próprio desse período de pós-guerra, que trouxe uma carga sobre a volta da mulher ao lar, ao espaço doméstico, a cuidar dos filhos na infância para se tornarem os futuros cidadãos a pátria”, destaca.
A mulher sempre foi notável, contudo se exaltava essa imagem da mãe patriota que cuidava do futuro cidadão, e essas duas ordens se encontravam e se enfrentavam, como afirma a pesquisadora. “Uma mulher que buscava por mais direitos e participação política, ao mesmo tempo em que forças se contrapunham a isso, como a própria igreja, que realizava campanhas para a não dissolução da família, contra a imagem feminista”.
Sobre a relação entre a atuação das mulheres no mercado de trabalho na primeira metade do século XX e na contemporaneidade, a pesquisadora afirma que a semelhança está no processo de continuidade de mobilizações de lutas, que surgem, a cada tempo com novas demandas. Com esses modos diferentes de analisar os acontecimentos, sob ponto de vista do conhecimento histórico, cabe considerar que ao olhar o recorte da história, as mobilizações são de cunho político e eram voltadas para setores médios urbanos, ligados às mulheres brancas nesses espaços, com instrução formal.
“As mulheres que empreendem essa luta, até a década de 70, são muito ligadas a esse perfil, um perfil branco, urbano, instruído. Muitas das primeiras feministas tiveram formação em uma Escola Normal”, garante a pesquisadora.
Mary fala que existem mulheres com diferentes demandas, diferentes necessidades, dependendo de sua posição na sociedade. As lutas que se empreendem hoje, com relação ao lugar da mulher no mundo do trabalho ou na sociedade, leva em conta essas especificidades.
“O olhar da história leva cada vez mais em conta essas especificidades. Mulheres negras sempre trabalharam, nunca foram tidas como delicadas, dia-a-dia, arduamente, carregaram pesos, empurraram coisas, trabalharam na roça, na lavoura. Mulheres pobres, do sertão, sempre colheram carnaúba ou bateram palha. Então, o que se deve considerar hoje é que essas lutas devem levar em conta as diferentes demandas existentes. Como é tratado uma mulher negra no mercado de trabalho? E sobre a questão da aparência, do cabelo, da cor da pele, da escolarização, do sotaque? Muitas vezes parece bobagem, mas a forma de pronunciar o sotaque pode ser uma porta aberta ou fechada para uma mulher trabalhadora. Então, hoje as lutas são empreendidas por setores que dizem quais são as demandas, que não são as mesmas para todas”, revela.
Mary aponta ainda que hoje, a partir do olhar de historiadores e sociólogos, busca-se muito essas nuances e movimentos sociais. Considerar isso, a realidade em que os movimentos de mulheres se deparam, é tomar consciência das diferenças que atingem as pessoas que têm mais ou menos oportunidades.
“Hoje, o desafio tem muito mais o sentido de que não nos tirem direitos conquistados com tanto esforço, que se tenha a consciência de que a sociedade é diversa, complexa e que muitas vezes são mulheres de grupos específicos que precisam empreender a luta. As mulheres camponesas têm as suas, as mulheres negras têm as suas, as mulheres indígenas, as mulheres trans e as mulheres do setor formal ou informal também. É claro que existem pontos em comum em meio as diferenças, solidariedades ou melhor dizendo, uma sororidade, além da luta pelo direito de estar em qualquer lugar que pretenda”, finaliza.∎
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