A covid-19 é uma doença que não faz distinções entre as pessoas, já infectou milhões e levou a óbito centenas de milhares, em todos os continentes. Cada país apresentou uma resposta diferente à ameaça, de acordo com suas capacidades, sendo a prática do isolamento social, por orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS), uma medida adotada por praticamente todos os países onde o vírus chegou, porém a eficiência do isolamento depende de dois fatores: o timing do decreto de fechamento de serviços e de orientação ao isolamento, ou seja, o momento certo de se isolar – preferencialmente antes do vírus se espalhar sem controle –, bem como a própria responsabilidade social da população quanto à ameaça e sua disposição para obedecer às orientações das autoridades sanitárias.
Porém, o isolamento social é uma medida preventiva, que busca funcionar como redução de danos, sendo impossível evitar que haja contaminações, mas com objetivo de que essas contaminações não atinjam um número elevado de pessoas, de modo a sobrecarregar os hospitais. O Brasil, por exemplo, vive uma crise política constante entre os três poderes e atritos entre a postura do poder executivo federal e dos estados, além de que na grande maioria dos estados as pessoas não cumpriram satisfatoriamente o isolamento social, o que fez com que apenas o isolamento não fosse suficiente para frear as transmissões e consequentemente, os óbitos. O Brasil até o começo de julho era ainda o segundo país com maior número de casos e um dos que mais registrava novos casos no mundo.
Ao passo que a pandemia do coronavírus segue fazendo vítimas e infectando novas pessoas ao redor do mundo, os esforços para encontrar meios de prevenção e tratamentos mais rápidos e eficazes surgem em diversos países. Cientistas buscam respostas para diagnósticos, intervenções preventivas, terapêuticas e vacinas. Com a demanda por respostas da comunidade científica que a doença vem causando, as linhas de pesquisa se concentram em sua maioria no tratamento contra a doença e no desenvolvimento de vacinas. Nunca o mundo assistiu em tempo real o trabalho conjunto de tantos atores para derrotar uma pandemia, e o maior desafio é a busca de respostas rápidas, num ritmo oposto ao da dinâmica tradicional e criteriosa das pesquisas.
Nessa corrida contra o tempo, surgiram estudos com diversos fármacos, a exemplo da cloroquina e a hidroxicloroquina. Estas substâncias ganharam fama de forma rápida, já que tiveram espaço no debate midiático através da atenção dada pelo presidente da República e seus apoiadores. Experimentos de laboratório feitos em células atestaram que esses compostos usados contra malária e doenças autoimunes têm efeito imunomodulador — fornecem aumento da resposta imune contra determinados microrganismos, por isso é usada para tratar doenças autoimunes, como lúpus e artrite reumatoide. Porém, semanas depois, estudos conduzidos na China e na Europa colocaram dúvidas sobre a eficácia da cloroquina — e ainda apontaram efeitos colaterais sérios, como arritmias. Além disso, enquanto alguns testes indicaram melhora dos pacientes, outros apontam que a droga não fez diferença no tratamento.
Outras substâncias potencialmente promissoras estão na esteira das pesquisas, como a azitromicina, antibiótico com efeito antibacteriano, comumente usado para combater doenças do trato respiratório; no caso da covid-19 sendo usado em conjunto com a cloroquina e hidroxicloroquina e o remdesivir, aprovado nos Estados Unidos para o uso em tratamento de pacientes com a covid-19 em estado grave. Ambos ainda não foram aprovados definitivamente em testes de eficácia e segurança para uso.
Entre tantas linhas de pesquisa diferentes, uma notícia animadora surgiu no Piauí. Pesquisadores do Grupo de Química Quântica Computacional e Planejamento de Fármacos da Universidade Estadual do Piauí (UESPI) identificaram substâncias encontradas no óleo extraído do fruto do buriti com capacidade para, possivelmente, inibir o sistema enzimático do coronavírus. O projeto está sob orientação do professor Dr. Francisco das Chagas Alves Lima, pesquisador que atua como professor de Química da Universidade Estadual do Piauí (UESPI) e orienta no Programa de Pós-Graduação em Química da Universidade Federal do Piauí (UFPI). O artigo com os resultados foi executado pelo Professor Allan Costa, do Instituto Federal do Pará (IFPA), como parte de sua pesquisa de doutorado, em parceria com os pesquisadores Ézio Sá (IFPI), Roosevelt Bezerra (IFPI) e Janilson Souza (IFMA), do mesmo grupo.
Hoje nas grandes indústrias farmacêuticas, o começo de uma pesquisa, quando não se dispõe de muita informação sobre o objeto, por exemplo sobre a cultura de uso de uma planta do interior, é feito um procedimento chamado planejamento de fármaco, como relata o professor Francisco das Chagas Lima. O planejamento de fármaco é feito reunindo um grande grupo de moléculas do objeto, onde é executado um estudo in silico com a finalidade de ver qual dessas moléculas tem a melhor interação para os efeitos desejados. Posteriormente é feito o estudo in vitro, onde uma célula é contaminada com outro objeto de estudo, no caso o vírus, e então são testados quais moléculas têm a melhor ação para inibi-lo. A próxima etapa é chamado estudo in vivo, onde no lugar da célula é testado em um animal, com o mesmo método de testagem das moléculas que reagem com a célula e com a verificação se houve efeitos colaterais, etapa que ainda não é clara nas fases anteriores.
“A grande sacada do estudo in silico, que consta neste primeiro artigo que publicamos é que com ele foi reduzido em 40% a necessidade do uso de cobaias animais, porque agora descobrimos 3 moléculas com potencial entre as 9 presentes no óleo, sendo desnecessário agora continuar os testes com as outras 6. Essas três moléculas do óleo de buriti apresentaram resultados teóricos muito bons de inibição da estrutura peptidase 2GTB, que possui 96 % de similaridade com a principal protease 6lu7 do covid-19, essa protease 6lu7 está relacionada com ciclo biológico do vírus. Desta forma, os resultados com a peptidase 2GTB abrem portas para novos estudos de possíveis inibidores da protease 6lu7 utilizando o óleo de buriti. Infelizmente, para o avanço da pesquisa, o Piauí dispõe de pouquíssimos laboratórios de nível 2 e 3 para se trabalhar com vírus. No Brasil, os laboratórios de nível 4 são apenas os do Instituto Butantan e da Fiocruz, então não há muitos laboratórios que fazem pesquisa com vírus. No Piauí não existe nenhum em que possa haver um pré-estudo in vitro de vírus. Um amigo pesquisador de São Paulo entrou em contato comigo sobre essa questão, lá ele vai poder verificar o estudo in vitro dessas moléculas”, revela o professor.
O professor Francisco Lima explicou à Sapiência que o estudo in silico consistiu em um estudo computacional das moléculas em 3D que estão presentes no óleo do buriti e de enzimas já conhecidas do Sars-CoV-2. Essas enzimas estão disponíveis no banco de dados online Protein Data Bank (PDB), de onde foi feito o download das estruturas.
“Dentro da enzima existe uma região chamada sítio ativo, onde ocorrem interações biológicas entre a enzima e as moléculas, nesse sítio ativo acontecem diversas reações químicas, por exemplo quando uma pessoa toma uma aspirina, tem uma determinada região na enzima onde há uma reação química entre moléculas, estas saem de dentro da enzima e então são eliminadas pelo sistema excretor, por exemplo urina ou suor”, explica o pesquisador.
A partir daí, iniciaram-se duas metodologias na pesquisa, primeiramente a docagem molecular: método computacional que pode encontrar modos de ligação mais prováveis entre uma substância ligante e um receptor macromolecular biológico. As moléculas presentes no óleo de buriti foram inseridas no sítio ativo e foi feita a docagem através do programa computacional utilizado, que mostrou a região onde interagem e quais aminoácidos estão inseridos no processo, ao final foi obtido a classificação de qual ou quais moléculas melhor interagiram.
Então é feito o estudo em dinâmica molecular, não mais estático, onde as moléculas são observadas entrando no sítio ativo da enzima, interagindo os aminoácidos mais importantes e saindo, com isso é possível constatar quais aminoácidos melhor interagem dentro do sítio ativo e quais tem maior potencial para sintetização de fármacos, para o estudo posterior in vitro.
“Aí surge a pergunta: porque o óleo do buriti? Basicamente, porque nós já temos conhecimento de diversas ações importantes do óleo: além de um riquíssimo alimento ele é repelente, um bom cicatrizante, assim como o pequi, tem efeito anti-inflamatório já que ambos possuem ácidos graxos. Em alguns casos também é usado como inibidor de veneno de cobras. Por isso escolhemos essa substância que é abundante no nordeste e no norte, contemplando também o aluno do doutorado e professor do IFPA, Allan Costa. No Norte é muito comum esses usos do buriti como medicina tradicional, daí surgiu a ideia”, conta o professor.
O professor explica que para inibir a ação de uma enzima ou vírus, é preciso encontrar uma molécula que os impeça de interagir ou replicar com o meio biológico. Para que o vírus se desenvolva ele precisa estar livre de qualquer molécula que dificulte sua atividade, então se se encontrar uma molécula ou moléculas que permaneçam dentro do sítio ativo da enzima, isso mostra que essa molécula tem potencial de inibir a ação do vírus. No melhor dos casos, impede do vírus multiplicar, como no caso das vacinas, ou impede de interagir no meio biológico.
“O artigo que publicamos vai trazer os detalhes desse processo, mas falando de forma resumida: encontramos uma molécula capaz de impedir que o vírus interaja no meio biológico, ou seja, com as células receptoras na qual ele iria usar para se replicar, como ele não interage e tem vida curta, ele não tem capacidade de se reproduzir e consequentemente morre sem atacar as células como normalmente faz”, detalha o pesquisador.
Atualmente, estão sendo montados cálculos computacionais com a principal protease 6lu7 do COVID-19, como conta o professor do IFPA Allan Costa. “Vamos estudar como é o comportamento dessa proteína em relação às moléculas já estudas com a peptidase 2GTB. Não sabemos se teremos bons resultados, mas estamos confiantes. E quem sabe algum grupo experimental possa se interessar e fazer testes para verificar se realmente tem eficácia ou não,” finaliza o professor.
Testes in vitro logo deverão ocorrer, já que os resultados dos estudos in silico se mostraram promissores e a pesquisa está sendo vista por muitos cientistas ao redor do mundo, estando entre os artigos com maior número de visualizações da edição do Journal of Biomolecular Structure Dynamics em que foi publicado. Assim como incontáveis outros vegetais com propriedades de cura, o buriti é útil para muitas finalidades e comprovadamente poderoso em testes químicos. A rica flora dos biomas brasileiros ainda pode esconder diversos benefícios para a humanidade que ainda não foram explorados, cabe o investimento na ciência ser o motor propulsor dessas descobertas.∎
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